[Conto] Má Atriz

Pedro Leite – Para o UàE* – 28/11/2018

 

A noite afundou para além da metade, rumo a madrugada. E, como de hábito, o céu escuro era desafiado por umas duas lâmpadas amarelas incandescentes, dessas nada econômicas. Desperdiçavam muito calor para lançar um punhado de uma luz frágil, mordida pela noite quando tentava iluminar para além da janela do sétimo andar do prédio. Jonas, encalorado, foi até os vitrais e fez deslizar os painéis que o sustentavam sobre os trilhos do parapeito, abrindo assim a janela. Pretendia ser abraçado por um vento fresco. Infelizmente havia só essa brisa, quase parando. Aliviava muito pouco. E, então, ele se apoiou no beiral e projetou o tronco para fora, como que tentando raspar a atmosfera fria com uma colher curta, que era o seu corpo.

Assim se deteve ali uns instantes, olhando o pátio, com aqueles pisos quadrangulares de diversos tamanhos que, no fim, se encaixavam num quebra-cabeça sem graça. Depois voltou-se para cima se lançando um pouco mais para fora e fazendo um giro contorcionista. Olhou para o céu, o infinito que nascia logo depois do último andar do prédio, o décimo primeiro. Buscava alguma estrela e, com muito custo, achou pontos pálidos dispersos uns dos outros. Depois voltou o corpo à posição normal e, no horizonte, via apenas pedaços do céu negro em filetes, por entre as colunas de prédios dos diversos condomínios enfileirados. Constatava com certo rancor que era esse monte de gente amontoada, umas em cima das outras que, dali a algumas horas, sairiam com seus carros das garagens, tornando o tráfego na rua, às sete horas da manhã, insuportável. Saiam todos sempre ao mesmo tempo, afoitos, atrasados, correndo atrás de suas próprias ilusões. Entupiam a via de acesso à região central da cidade, queixando-se do trânsito como se cada um ali, na verdade, não tivesse sua pequena parte na causação.

Queria uma outra vida, talvez, um outro lugar, um outro trabalho, um orçamento mais digno de alguém que pode comprar queijo parmesão ralado Faixa Azul sem que isso pareça uma lascívia digna de autoflagelação moral. No último ano, no acirramento da crise do país, abria os boletos de cartão e, mês a mês, quando lia o valor total a pagar, pareciam nascer do boleto duas mãos cada vez mais firmes, o estrangulando. Ao mesmo tempo uma voz rude lhe cochichava frases duras, para não dizer impropérios, o molestando de culpa por ter pedido pizzas demais, quando podia ter feito comida em casa. Devia queimar gordura e guardar dinheiro, e não o contrário. Sabia o lema, mas não o aplicava, nunca.

E lhe ocorria, em seguida, a memória da notícia recente de que André, do quinto andar, tinha comprado um carro zero. Era um pequeno prazer de Jonas – quando aguardava o ônibus no ponto em frente a saída da garagem do prédio –, vez ou outra, acenava ao André rejeitando a oferta de carona, quando o carro preto e luxuoso ascendia pela rampa da garagem. Jonas preferia ir de ônibus. Ficava satisfeito de assistir André, dentro daquele veículo supostamente potente e caríssimo, contrastando com aquela cara de tédio e enfastiamento com a bunda sobre os bancos de couro. André mantinha um braço tenso no volante e o outro debruçando o cotovelo na janela e segurando a própria testa com a mão. Andava a cinco metros por minuto dentro daquele carro imaginariamente veloz, sem mover um fio de cabelo ao vento. Aquele motor, tão caro, sequer podia ranger. Jonas se comovia com isso, sentia um regozijo, um acalento dessas invejinhas que dão e passam e, por isso, não se culpava demais por desejar o mal do outro só de vez em quando.

Seu corpo já havia esfriado um pouco. Além dos filetes de céu por entre os prédios reparou os paredões de janelas. A maioria delas com cortinas fechadas, sem luz alguma. De modo rarefeito algumas janelas espirravam luzes frágeis para fora. Brancas, amarelas, mais brilhantes ou mais crepusculares. Algumas pessoas, como ele, ainda estavam acordadas a essa hora, outras dormiam, talvez, com medo do escuro. No terceiro andar do prédio logo ao lado notou uma luz diferente, oscilante. Denotava uma provável SmarTV de cores vívidas, tão vívidas, que quase chegavam a projetar a imagem da tela, de modo invertido, nas cortinas cor de creme. Devia ser um filme de ação, conjecturou, dada a intensa agitação de luzes. Cônscio do sono que não vinha, ainda, decidiu ligar a própria televisão para ver se tinha algo de bom.

Esparramou-se no sofá e teve de se esticar para alcançar o controle, pois havia sido largado no lado oposto. Caçou filmes no Netflix, mas não pôde eleger nenhum além de ficar incrementando sua lista para ver depois. Ou eram opções ruins demais, ou eram boas demais para se dormir no meio e depois nunca mais ter a disposição para retomar. Gastou uma meia hora nisso e, entediado, ainda resistente a dormir, arriscou voltar aos canais abertos que hoje são muito pouco visitados pela grande maioria. Aleatoriamente, um canal estranho se abriu na tela. Estranho, mas que o cativou.

Na tela uma morena bonita, e sorridente, com uma vitalidade que destoava com aquela noite lúgubre. Ela falava sem parar e apontava para um quadro virtual ao seu lado que, efetivamente, ela não via, demarcando uma estética bastante arcaica de efeitos televisivos, algo anos dois mil. Por um lado, contornava o envelhecimento de Jonas, por outro, o recolocava nostalgicamente no apogeu da juventude. No quadro virtual havia uma matriz de onze por onze, na qual em cada quadrado Jonas via pequenas figuras de cavalos em movimento estereotipado em looping e, no topo da matriz, uma consigna: “ache a diferença”. Essa consigna a morena reiterava falando dezenas de vezes a mesma coisa, embora com frases distintas. Ela lembrava com doçura na voz que, caso alguém encontrasse a diferença, ligasse para ela imediatamente no telefone abaixo (que ela apontava com certa imprecisão a posição virtual dos números no display) e, ainda, acertasse a diferença, esse felizardo seria premiado com setenta mil reais. Não quaisquer setenta mil reais, mas setenta mil reais acumulados, dado que muitos telespectadores ligaram, erraram e, sob a égide de seus erros, o prêmio que começou com três mil reais foi sendo incrementado pela ignorância alheia para ser colhido por aquele que, finalmente, revelasse o intelecto mais elevado e superior.

De fato era muito difícil localizar o erro e, talvez, tenha sido essa a razão que levou Jonas a discar o número com um DDD tão estranho, que estava mais para o DDI da Finlândia. Ele olhou fixamente os cavalos por mais de vinte minutos. Nesse período não disfarçava uma certa palpitação no coração quando no programa o telefone tocava. A morena atendia, afinava ainda mais a voz, ficando quase infantil, e cumprimentava com cordialidade o telespectador em contato. Parecia que, nesses momentos, a receptiva apresentadora se movimentava mais. Projetava o corpo na direção da câmera num gesto amistoso e, ao mesmo tempo, com algum teor erótico desengonçado. Olhava para a câmera como se chegasse numa intimidade excessiva com o telespectador e, então, apertava uma mão contra a outra, comprimindo os seios e aumentando sutilmente o volume na blusa. Alargava ainda mais o sorriso, enrubescia as maças do rosto e, num timbre afável demais, recomendava que o telespectador em contato com ela podia pensar muito bem antes de falar, pois só havia uma chance para arriscar.

A apresentadora soava tão caricata que Jonas chegava a ver nisso um pedido de socorro implícito. Via a moça, certamente jovem, talvez com pouco mais que a metade de sua própria idade. Supunha ser ela uma vítima, provavelmente, de seu próprio desejo de uma fama inalcançável. Fosse pelo meio competitivo e elitizado, fosse pela própria inabilidade dela, ou pelas duas coisas. O esforço caricato com que ela interpretava excessivamente a tornava real em demasia. Não era precisamente isso o que “eles” fazem com as pessoas?, pensava e, em seguida, concluía, “Eles” nos enchem de desejos e nos pomos a dançar passos toscos de uma música que odiamos… Como se estivéssemos felizes! Sentia-se compreendido ao compreendê-la. Jonas se indagava o quanto ele mesmo, se fosse assistido de fora, não soaria ridiculamente caricato ao interpretar seu papel de quem gosta do próprio trabalho.

Tendo essa consciência pode-se dizer que, decididamente, Jonas não era do tipo que não reconheceria aí certa teatralidade amadora. Apesar da amargura acumulada dos anos, um ar melancólico que ele não largava, o seu juízo crítico permanecia intacto e, talvez, fosse esse juízo mesmo o que tornava a sua vida mais amarga. Sofria de juízo. Sobrevivia nele, em contrapartida, um ar bonachão em relação aos erros alheios, as mal-feituras e injustiças, os infortúnios de outros que assistia, e o fato de, ao notar o sofrimento nos outros, se compadecer rápida e ingenuamente. Preservava dentro de si essa suposição fantasiosa que ele próprio desconhecia, mas que o movia: queria salvar alguém e, assim, salvar a si próprio.

Quando começou a procurar o cavalo diferente de todos os outros o fazia por diversão e estava convicto que seu prazer ali se limitaria em jogar um jogo, próximo ao simulacro de uma mulher bonita lhe incentivando, até que o sono decidisse por ele que a terça-feira acabou. A demora em achar o cavalo diferente, contudo, o levou a uma imersão profunda. Jonas chegou a se ajoelhar para se aproximar da tela. Fez comprimir suas pupilas num canal estreito, o mais estreito possível que, quase fechando, ainda era possível captar a imagem pontual e precisamente. Apesar disso não via o cavalo diferente. Todos se moviam exatamente da mesma forma, na mesma direção e possuíam o mesmo corpo. Isso o perturbava progressivamente.

Olhou os cavalos, um a um. A moça apresentando fornecia dicas – “se concentra, olha bem, pode ter uma coisinha a mais, pode ter uma coisinha a menos”. E o telefone no estúdio tocava, ela atendia, Jonas aumentava o volume sutilmente, assim como aumentava volume dos seios da apresentadora. Um certo telespectador, ao ser atendido, deu o palpite de que o cavalo diferente estava na posição I-7. Jonas colocou uma mão em cada lateral da televisão e, agarrado à tela, voltou seu olhar para a expressão da moça que dizia “será?…será?!” ininterruptamente, enquanto rufavam pratos de bateria ao fundo. Algo otimista na apresentadora o levou a crer que era mesmo o I-7. Contudo olhava, olhava e olhava, e não via, no cavalo da posição I-7 qualquer diferença. Pensou que não havia nada de diferente ali, não era possível que fosse. Mais um telespectador dava atestado de sua ignorância ou apostava na sorte de modo arbitrário. Estava errado, erraria, com certeza. Talvez, lhe ocorreu, não houvesse nenhum cavalo diferente afinal; eram todos iguais, estava sendo enganado. Só podia ser isso. Foi quando na linha abaixo, seus olhos como que escorregaram para a posição J-7, e Jonas reparou um cavalo com uma pata a menos.

São alegrias pequenas se contamos a história, mas Jonas chegou a vibrar, não com um grito, mas cerrando os punhos e os tremelicando na direção da tela. Sabia que o telespectador que, naquele momento falava com a apresentadora, a ouviria dizer “será?…será?” e, logo depois, ela diria “não foi dessa veeeez!…continuem tentando… o prêmio agora é setenta e três mil reais gente!!”. E foi assim mesmo, conforme o previsto, que o desenrolar do programa sucedeu. Apesar de todo o senso crítico de Jonas uma vontade súbita e irrefreável de ligar o fez alcançar o telefone e, assim, começar a discar o número. Vai que cola.

Teve de tentar umas sete vezes até que, na oitava, não deu mais linha ocupada. O som agudo dos toques tuuuu-tuuuu, soavam, em intervalos regulares e contínuos, sobre um som quase imperceptível de concha mais ao fundo, típico de quando se telefona para algum lugar. Ele aguardava, olhando para a tela, fixado na posição J-7. Esperava ansiosa e inconscientemente por aquela sensação auditiva de abertura para entrada de ar no telefone, quando a ligação para de chamar porque foi atendida do outro lado. Aquele momento em que os tuuuu-tuuuus param e um clique seco interrompe o som de concha abrindo o acesso ao receptor da ligação. Demorou, mas aconteceu. Ele sentiu o clique seco. A ligação tinha sido atendida. Ele estava ligado. Estava, finalmente, dentro da televisão. Aspirou um ar e ia falar.

Mas não. O que se seguiu foi uma voz feminina, bastante mais desagradável e robótica, lhe informando que ele era o vigésimo nono na fila. Foi uma lástima, para não dizer patético, já que na primeira sílaba da voz robótica Jonas tinha já aspirado uma dose de ar para falar em voz grave e clara: eu sei a diferença! Teve que engolir de volta e refletir. Haviam vinte e oito pessoas na fila para serem atendidos. Nos vinte minutos que assistiu tinha ouvido, no máximo, se é que se recordava bem, uns dez telespectadores. Era um golpe esdruxulo que ele achou que nunca cairia. Tinha de admitir, ainda dava tempo de restaurar sua dignidade de não ser vítima desses golpes. Apesar de tudo algo lhe coçava. Estava mais tarde e, eventualmente, algumas ligações poderiam cair ou muitos, em função do sono, haveriam de desistir. E se todos acham que é um golpe, mas os corajosos perseverantes ganham? Criava para si uma dúvida insolúvel que, apesar de muitas nuances lhe informar que devia desligar o telefone, em contrapartida parecia bastante lógico que estar em vigésimo nono na fila dos setenta mil e poucos reais, tendo no bolso a resposta certa, era uma posição não tão ruim assim, no mundo. Era esperança o nome disso, que ele não sabia nomear naquela hora, e que nutria seu corpo inteiro. Era esperança, em tudo o que esse sentimento comporta de beleza e, vez ou outra, idiotia.

Suportou assim o telefone na mão, colado em sua orelha, enquanto a outra orelha e os olhos vigiavam a tela. Suportou cada novo participante do programa que errava. Cada acumulação do prêmio. Suportou a voz robótica, fria, lhe informar suas subidas de posições na fila. Eventualmente saltava três posições na fila e saia do décimo oitavo para o décimo sexto, de uma vez. Suportou a contínua voz incansável da apresentadora que, digno de nota, não esmorecia diante do que, possivelmente, era o roteiro mais difícil de dramatizar do mundo, pela precariedade de elementos que pudessem justificar um ser humano ser o que ela representava. Nem uma criança infame, em suas repetições incansáveis que servem a consolidar as primeiras grandes aprendizagens da vida – de que as coisas somem mas podem voltar – soaria tão estereotipada quanto as reiterações da apresentadora. Jonas suportou.

Quando estava em sétimo na fila a ligação caiu. A revolta lhe tomou e estava prestes a explodir em denúncias no Procon, em fóruns de internet e, talvez, até um processo judicial se perdesse a vergonha para relatar a um advogado a motivação do processo. Mas antes da revolta gerar qualquer ação foi amainada pela declaração seguinte da garota morena. Jonas estava tão ansioso e atento a fila de espera que não notou. O último telespectador que conseguiu o contato havia acertado e levado os quase oitenta mil reais. Algum felizardo apontou a J-7 e acertou. Era a J-7! Jonas sabia que era a J-7! Mas não pôde dizer. A apresentadora comemorava, saudava, exprimia, finalmente, o clímax daquele drama exaustivo que ela representava, em congratulações manifestas em pulinhos.

O Jonas pegou o controle e colocou o áudio da televisão no modo mudo. Estava desolado, não conseguia esconder de si próprio. Olhava na tela a morena vibrando e serpentinas e confetes irreais caindo sobre a tela. Na sequência, para sua surpresa, a apresentadora acenava um tchau e, quase imediatamente, surgia uma outra moça, tão bonita quanto, e um novo display, com um novo jogo. Agora uma matriz de ratos e um prêmio de irrisórios e reles três mil reais. Já eram quase três horas da madrugada. Chegou a olhar os ratos, uns instantes. Aqueles ratos aparentemente idênticos, naquelas pequenas janelas da matriz, fazendo seus movimentos circulares e um, dentre eles, portaria uma diferença valiosa e, ao mesmo tempo, imperceptível à primeira vista. Adormeceu nessa epifania.

Acordou numa espécie de ressaca, com a luz entrando mais que o habitual. Tinha se atrasado uma hora por ter esquecido de regular o despertador. Sorte o sol nascer daquele lado e fritar a pele de seu rosto exposta. Teve um sobressalto que o impediu de reconhecer seu primeiro pensamento da manhã. Também lhe escorregou feito margarina derretida o sonho que teve. Sabia ter sonhado, mas não conseguiu apreender uma figura sequer, só uma sinestesia, um eco de um prazer que não queria ter interrompido com o despertar. Mas era isso: a realidade se impôs o condicionando a entrar no fluxo automático do ligar a cafeteira, ir para o banho e sair; com o ônus de fazer apressadamente, em função do atraso, que já vinha se tornando cotidiano. Quando estava pronto para sair desligou a televisão, que passava desenhos, emudecidos. O mal-estar sobre essa madrugada só lhe viria mais tarde, bem mais tarde, dias depois, num segundo tempo, quando no mês que vem ia verificar o custo da ligação: setenta e sete reais a dose de esperança.

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