[Debate] A revolta chilena e a repressão do Estado

Thiago Zandoná – Redação UàE – 15/11/2019

Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.

Há um mês o povo chileno está na rua lutando contra o Estado e as medidas implantadas pelo governo e pelos capitalistas. Ao passo que avança as mobilizações, o enfrentamento do povo através das manifestações, barricadas, greves, se desmancha a imagem de país tranquilo, “oásis da América Latina”. O primeiro país latino-americano que teve medidas neoliberais implantadas – através da ditadura de Pinochet (1973-1990) – revela nitidamente o descontentamento de sua população e a ânsia por mudanças.

A revolta no Chile segue as mobilizações que têm acontecido mundo afora. Só na América Latina, houve ou segue ocorrendo grandes mobilizações em Honduras, Haiti, Porto Rico, Equador, Argentina e Bolívia. Além desses, vemos movimentos semelhantes em Hong Kong, Líbano, Iraque, Argélia e em Catalunha (na Espanha).

Essas mobilizações têm em comum a insatisfação inicialmente determinada em uma pauta (combustível, vale transporte etc), mas que em seguida se expande para diversas áreas da vida social, tal como saúde, educação, trabalho, transporte, aposentadoria etc. O conjunto de reivindicações tem levado, em muitos destes países, a pautar a saída do governo e, até mesmo, a uma nova constituição. No Haiti e Honduras, a renúncia de seus líderes está na pauta do dia das mobilizações. No Chile, apesar da tentativa de apaziguar, seguem fortes as reivindicações pela saída de Piñera e por uma nova Constituição (em substituição da Constituição de 80, do ditador Pinochet).

Essas revoltas, que aglutinam os mais diferentes descontentamentos,  apontam para uma potencialidade da população. A radicalidade ao exigir, inclusive, a renúncia dos presidentes aponta para uma disposição – de ao menos alguns setores da sociedade – em romper com as formas atuais de governo. 

Não à toa, no Chile, a resposta do Estado – na figura do governo, do Exército e da polícia – tem sido a implacável violência. O Estado chileno já assassinou 24 pessoas que se manifestavam por melhores condições de vida (incluindo uma criança de 4 anos). É uma média de quase uma morte por dia, desde o início dos protestos. 

No começo dos protestos, o governo de Piñera colocou o Exército na rua e declarou toque de recolher para algumas regiões do Chile. O resultado foi, além dos assassinatos, cerca de 50 casos de tortura e mais de 50 casos de violações sexuais cometidas pelas forças armadas. A repressão ímpar do Estado chileno desapareceu com mais de 20 pessoas e tirou a visão a base de tiros de mais de 200 pessoas, sendo que um garoto perdeu os dois olhos pelas balas do Estado (um número sem precedentes mundialmente). Além disso, há mais de 5 mil detidos, dos quais cerca de 1.200 estão em prisão preventiva.

Como resposta, os protestos elevaram o grau de organização e violência – guardas populares, formas e equipamentos improvisados de se defender do aparato repressivo. “O Chile despertou. Piñera quer fechar os olhos do povo com tiros, mas não vai conseguir: Fora Piñera já”, manifestava um dos cartazes do protesto. No Equador, indígenas chegaram a prender policiais que invadiram seus territórios durante a onda de protestos contra as medidas do FMI. 

Esse massacre cometido pela Estado chileno revela uma herança da ditadura de Pinochet e, ao mesmo tempo, não se diferencia substancialmente do grau de repressão que os demais Estados têm infligido às populações. No Haiti, somente na segunda onda de protestos deste ano contra o governo (a partir de setembro), pelo menos 42 pessoas foram assassinadas e 86 ficaram feridas. Na França, 2.000 pessoas foram sentenciadas entre mais de 8.700 detidos desde o início de protestos dos Coletes Amarelos.

Na América Latina, a face violenta do Estado se mostra de modo paradigmático. Faz parte da nossa história sofrer golpes de Estado que levam à ditadura empresarial-militar. A transição da ditadura para a suposta democracia, porém, revela a permanência das mesmas relações de poder. Na transição chilena, a saída de Pinochet não implicou mudanças nas leis fundamentais, ao contrário, se manteve a reforma trabalhista que precariza as condições de emprego, provoca salários reduzidos e atomiza a luta trabalhista ao multiplicar os sindicatos. Pinochet chegou a ser nomeado senador vitalício após o fim da ditadura.

A exemplo da continuidade das medidas sócio-econômicas entre os períodos ditatoriais e democráticos, bastaria pensar o caso do ensino superior. Assim como no Chile de Pinochet, na ditadura brasileira se começou um processo de privatização do ensino superior que não foi interrompido com a transição democrática, ao contrário, em muitos momentos tais medidas foram intensificadas chegando a criar uma parcela significativa da juventude endividada ao sair do ensino superior. 

Na América Latina sempre houve uma continuidade entre as ditaduras e os regimes chamados de democráticos: os capitais seguiram sendo beneficiados com a mesma centralidade. Por isso, para além de olhar para a forma de exercício do poder (seja ditatorial ou democrático), é importante notar quem tem o poder. Tal como no Chile, a saída da ditadura não alterou aqueles que têm o poder. Por isso, há um limite claro em tais democracias.

No caso chileno, os governos “democráticos” que sucederam Pinochet (Alywin, Frei e Lagos) apenas aperfeiçoaram e concretizaram as medidas de pauperização da população e o processo de desnacionalização. 

Não se trata, por isso, apenas da preservação do aparato repressor, mas da continuidade de toda lógica social e econômica.

Para fazer frente ao grau de repressão que é colocado como resposta pelos Estados é preciso avançar na organização de planos de ruptura. É preciso, além da reação, que haja um plano de ação positiva. Uma proposta substancialmente diferente da que está sendo colocada hoje à nível mundial. Essa demanda aparece na revolta chilena ao pautar a eliminação da Constituição de Pinochet. 

Esses movimentos, que novamente voltam a tomar corpo mundialmente, surgem como consequência das medidas implantadas e intensificadas após a crise estrutural de 2007-2008. Certamente, não estamos no fim de revoltas de tal intensidade. É preciso, por isso, estarmos preparados para romper com a normalidade e apontar para uma agenda diferente da que hoje nos é dada à nível mundial.

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