[Debate] A vida ou a economia? Eu escolho os dois!

Foto: Guernica/Pablo Picasso (1937)

Flora Gomes* – Publicado originalmente no Universidade à Esquerda – 31/03/2020

Um oficial alemão visitou Pablo Picasso em seu estúdio em Paris, durante a ocupação nazista da França. Ali, viu a pintura Guernica e, surpreendido pelo caos vanguardista do quadro, perguntou a Picasso:

– Foi você quem o fez? – Ao que Picasso respondeu:

– Não. Vocês o fizeram.

Zizek

Parece-me que o cenário contemporâneo tem apresentado elementos cada vez mais perceptíveis acerca dos antagonismos que regem nossa forma de vida. A manutenção da vida e o desenvolvimento econômico têm sido diariamente contrapostos, quase como um chiste produzido pela crise. Já que é preciso manter viva a classe que produz todas as riquezas mas que, para isso, é preciso que ela não esteja exposta aos riscos de contágio no mundo do trabalho. Talvez a forma de produção econômica seja efetivamente a origem do nosso problema de reprodução da vida. 

Nesse cenário fica evidente o que Marx aponta como as relações capitalistas de produção: ao capitalista interessa apenas a mercadoria força de trabalho com seu “mágico” poder de criar valor, pouco importando a vida do trabalhador. Prova disso são as recentes declarações esdrúxulas de sujeitos como Junior Durskim e Rubem Alves. Para eles, a morte de trabalhadores não é digna de luto. São efeitos colaterais que precisam entrar nos cálculos. Face cruel e verdadeira do neoliberalismo. 

E que não nos enganemos: o Estado não se contrapõe aos interesses mortíferos do capital. Para não recorrer à caricatura  nua e crua, como é evidente nas declarações sem pudor do Presidente Jair Bolsonaro, vejamos o exemplo de Boris Johnson, que demorou semanas para tomar medidas efetivas de enfrentamento. Essa demora das “grandes potências” em responder à altura da gravidade do vírus tem origem política e econômica. Como aponta Mike Davis,  esses países não estavam em posição de atuar, já que os sistemas de saúde de muitos países europeus há anos foram dizimados e privatizados por meio de políticas de Estado. Muitos epidemiologistas estavam prevendo um vírus com comportamento semelhante ao SARS-Covid-2 e medidas de precaução poderiam ter sido tomadas com uma distância temporal confortável. Mas, isso significaria investir por exemplo, em testes massivos, e os Estados direcionam sua rentabilidade econômica para outros interesses.  

Ainda que sejam absolutamente necessárias para sobrevivência, as medidas de quarentena, como aponta Michael Roberts, têm visado salvar sobretudo grandes empresas capitalistas. Se por um lado a vida dos trabalhadores é minimamente poupada, por outro não podemos afirmar que ela é diretamente beneficiada. As medidas de concessões de linhas de créditos e compra de títulos em valores grandiosos, como as anunciadas pelos bancos centrais, visam sobretudo salvar os grandes capitalistas. No Brasil,  as prioridades ficam ainda mais evidentes quando, enquanto o Banco Central anuncia a autorização de empréstimos a instituições financeiras, o Presidente faz um pronunciamento público defendendo o fim do isolamento. 

Ainda que os efeitos da quarentena possam ser sentidos na economia, Roberts tem insistido no debate de que a recessão que estamos atravessando – e que tende a se intensificar – não tem “o colapso na confiança dos negócios” devido ao coronavírus como causa. Segundo suas previsões, o período de recessão que estamos a atravessar será muito pior do que o de 2008-2009. Para o economista, quando as medidas de contenção da pandemia chegarem ao fim, a única maneira de recuperar a economia seria adotando medidas semelhantes ao dos tempos de guerra, com investimentos em grande escala nos setores estratégicos e produtivos sob comando da direção estatal. Talvez possamos adotar essas previsões como um pressuposto para lançar um olhar sob as saídas apresentadas pelo Estado brasileiro e porque elas são tão preocupantes.

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A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 representou a intensificação de uma lógica que vinha se desenhando há tempos em território brasileiro. Não foi sob seu comando que os princípios fundamentais da Universidade Pública foram corroídos. Porém o Future-se representa uma declaração da guerra de todos contra todos, em que cada departamento teria que disputar por recursos de pesquisas e todo o patrimônio mobiliário da Universidade poderia ser colocado à serviço do capital financeiro. Além disso, é em meio a esse duro momento que todo o país atravessa que a CAPES recentemente anunciou novos cortes na pós graduação, por meio de uma portaria que visa intensificar a briga por financiamento de pesquisa,  estrangulando as possibilidades da ciência com a intensificação das gratificações por desempenho – o que na prática significa colapsar ainda mais a produção científica brasileira. Ademais, Bolsonaro não foi o primeiro a atacar o sistema previdenciário brasileiro. Contudo, foi em seu primeiro ano de governo que assistimos a destruição geral da previdência pública. Ademais, quase que diariamente acompanhamos as declarações do Ministério da Economia atacando os servidores públicos, cujos regimes de trabalho ainda se fundamentam nos princípios estatutários, tratando estabilidade como um privilégio. 

O avanço dessas reformas durante os 15 primeiros meses de governo demonstram  a insistência em seu projeto. Quando Bolsonaro faz um pronunciamento público afirmando que a população deve abrir mão do isolamento para salvar a economia às custas da vida de muitos trabalhadores, ele está afirmando que é incapaz de inserir outra lógica que não a da destruição, uma vez que sem nenhuma quarentena o número de mortos pode chegar a 1.1 milhão no Brasil. É essa racionalidade que fundamenta as declarações direcionadas desde o início de seu mandato contra a única instituição que possui certa autonomia de crítica ao Estado, que destrói a solidariedade intergeracional, que homenageia militares e faz piada com o assassinato de Marielle Franco. Não defender o isolamento social enquanto acompanhamos as consequências da irresponsabilidade de países como Itália e Espanha,  não é burrice, é projeto. Apresentar outra saída, a de solidariedade e cuidado mútuo, é esquivar-se de sua lógica. Por isso, para garantir seu propósito o Estado brasileiro pode reerguer estratégias que nunca ousou enterrar definitivamente.

Na noite de ontem, o Ministério da Defesa divulgou uma Ordem do Dia Alusiva ao 31 de Março de 1964, alegando que a ditadura empresarial-militar foi um período em que o Brasil estava pronto para transformar em prosperidade o seu potencial de riquezas. Faltava a inspiração e um sentido de futuro. Esse caminho foi indicado. Os brasileiros escolheram.  Entregaram-se à construção do seu País e passaram a aproveitar as oportunidades que eles mesmos criavam”. Em meio a essa crise, as Forças Armadas recorrem à falsificação da história numa tentativa de apresentar uma saída coercitiva para essa crise. E não foi a primeira vez. No ano passado Jair Bolsonaro já havia exigido uma homenagem às torturas do nosso passado.   O Estado brasileiro parece seguir disposto a recorrer aos traumas de sua população para levar a cabo seu projeto. 

Raquel Varela recentemente escreveu sobre os perigos da suspensão das liberdades democráticas como política de enfrentamento a situações de catástrofe social. Em Assembleia Nacional, ontem (30), na Hungria, foi aprovada uma lei que prorroga o estado de emergência e concede plenos poderes ao Primeiro-Ministro Viktor Orbán, garantindo  o direito de governar por decreto por tempo indeterminado. Na semana passada, o Ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta alardeava sobre a suspensão das eleições municipais este ano. O Presidente chegou a ameaçar publicamente a população ao afirmar que não seria muito difícil declarar estado de sítio em território brasileiro. Se é essa a saída que o Estado brasileiro tem forjado, talvez seja hora de construirmos a nossa. 

Para Michael Roberts, a única maneira de sair dessa queda seria substituindo a lei do valor pela propriedade pública, com investimento e planejamento e colocando todos os recursos a disposição das pessoas que trabalham. Quarentena para todos é o primeiro dever para garantir a sobrevivência, mas precisamos pensar sobre nossas formas de vida e nossa relação econômica. O acesso à saúde deveria ser de todos, injeções financeiras em Planos de Saúde não podem ser a prioridade governamental; as Universidades deveriam ter recursos ilimitados para estar trabalhando não apenas em materiais e equipamentos para auxiliar as demandas de saúde, mas também em pesquisas sobre o coronavírus e outras epidemias; o fundo público, composto por parte do salário dos trabalhadores, deveria estar a disposição da garantia do isolamento social. 

Se nunca atravessamos uma crise como essa, não seria o momento de ousarmos soluções nunca antes experienciadas? Teríamos que escolher entre um ou outro se a produção econômica estivesse à disposição da manutenção da vida e não das taxas de lucro?

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