[Debate] Contribuições para o debate sobre a crise brasileira – 1ª parte

Allan Kenji Seki* para o UFSC à Esquerda – 24/08/2017

O Brasil passa por mais uma crise, grave, sistêmica e com raízes profundas na formação social brasileira e nos veios da dependência que carregam a vida nacional dos afetos vis da burguesia mundializada. Essa crise, sem que as lutas políticas sejam capazes de reorganizar o ritmo da luta de classes, custará aos presentes e às futuras gerações de trabalhadores brasileiros mais caro do que deveríamos estar dispostos a pagar algum dia.

É preciso compreender a natureza da crise brasileira atual, pois ela não será passageira e não será resolvida através das políticas empenhadas pelo capital. Essa tarefa exige a supressão das tentativas de caracterização da crise como crises políticas, crises morais ou crises econômicas. Para a surpresa de muitos, não há qualquer ineditismo que as crises sejam ao mesmo tempo de ordem política, econômica e cultural. Afinal, as crises do capitalismo não seguem os mesmos rumos da divisão técnica dos departamentos universitários, e são sempre crises gerais do modo de produção da vida como um todo. A compreensão da crise, contudo, não é esforço para um ou para alguns, mas um esforço coletivo e que deve ocupar a todos. É assim que inicio uma série de debates sobre a crise atual e abro o convite à participação dos leitores e colaboradores do jornal.

Penso que nos últimos dez anos, em apenas dois dos jornais de maior circulação no Brasil (Folha de S. Paulo e Estadão), a palavra “crise” estampou as páginas ao menos 350.683 vezes. Entre os diversos slogans, figuraram: “crise econômica”, “crise política”, “crise fiscal”, “crise de lideranças”, “crise internacional”, “crise de confiabilidade”, “crise ética”, “crise moral”, “crise social”. A partir de 2008, quando os mercados mundiais expressaram mais evidentemente as fraturas do padrão de acumulação capitalista sob o predomínio da finança, tendo sua face aparente mais visível na crise dos títulos bursáteis americanos, a ideia-força da crise ganhou amplos espaços e se fez presença permanente em nosso cotidiano: fala-se em crise todos os dias, utilizam-na como justificativa para depor governos, para extinguir direitos históricos dos trabalhadores, pensionistas, quilombolas, indígenas e estudantes. Mas apesar de tudo isso, é raro termos a oportunidade de saber precisamente o que “crise” pressupõe à cada novo ajuste retórico. As classes dominantes vão apresentando nos cabides dos sociólogos e economistas, nos jornais, nas escolas, nos discursos de parlamentares, na televisão (e até nas novelas) uma linguagem quase uníssona. Isso não quer dizer que falem sempre da mesma coisa, mas que esse discurso gelatinoso se condensa como portador de uma polissemia oportunista; aliás, se são muitos os adjetivos e qualificativos da “crise”, talvez seja para que nestas pequenas diferenças semânticas possa caber uma dose a mais de convencimento.

Não é muito revelador nesse sentido que a “crise” tenha tomado seu lugar entre “deus” e a “família” nos discursos patéticos dos congressistas naquela fatídica sessão de impedimento da presidente Dilma Rousseff?

No início de abril de 2016, pouco antes do golpe, o editorial da Folha de S. Paulo desejoso, sentenciava: “A presidente Dilma Rousseff (PT) perdeu as condições de governar o país”. Tenho a impressão de que esteve às vistas de todos os que queriam ver que o impedimento da presidente Dilma não guardava nenhuma relação com qualquer crime, menos ainda com crimes de responsabilidade. A crise internacional do capital, aquela “marolinha” nas palavras do ex-presidente Lula da Silva, havia chegado – na realidade havia chegado muito antes, embora seus efeitos tenham tido certo atraso na escalada sistêmica que agora se alastra largamente. Mascarada pelas políticas aplicadas governos petistas, ao custo de bilhões do orçamento público, suas consequências começaram a ser sentidas somente quando as águas batiam aos pescoços. Entre 2011, o Governo Dilma começou a aplicar uma série de medidas entre desonerações das folhas de pagamentos, emissão de títulos da dívida pública, emissão de capital fictício, isenções tributárias e ampliação de programas de privatizações e parcerias público-privadas que abriram os cofres públicos, já escasseados pelo brutal sistema de transferências via dívida pública, para garantir as condições de acumulação capitalista no seguimento da crise do capital. Essas políticas, arrombaram as contas públicas: nunca foram os programas sociais que corroeu o orçamento da união ou dos estados e municípios, mas o gargalo de dinheiro público transferido para o fundo de acumulação do capital. É preciso que se diga isso claramente. Quando já não havia mais água para sair dessa torneira, o mercado já não mais pedia: ele exigia. Exigia a continuidade do investimento público aos baldes para fechar os balancetes e a continuidade das desonerações, isenções e reduções tributárias, emissões de capital fictício, enfim, a lista segue incontável. Com o orçamento público estrangulado pela sanha capitalista, a solução encontrada pelo governo era cortar nas despesas – o que, na linguagem do mercado, sempre significa cortar direitos sociais.

A indecente voracidade com a qual o mercado consumiu o orçamento jamais foi compensado por investimentos no Brasil, para a tristeza daqueles seduzidos por certas utopias desenvolvimentistas os recursos obtidos pelo assalto legalizado foram diretamente transformados em distribuição de dividendos para os proprietários desses capitais (é preciso dizer também, forma de apropriação de lucros que no Brasil, diferente de qualquer país desenvolvido no mundo, é isenta de tributação de renda) e remessas de lucros para as matrizes nos países centrais. Se você tem dúvida sobre isso, basta comparar como a indústria e o comércio foram às minguas justo no período em que o governo mais abria os cofres públicos para os “digníssimos” empresários empreendedores.

Dilma, assim como Lula em seus dois mandatos presidenciais, foi muito sensível ao mercado durante todo (todo!) o seu governo. Mesmo nas eleições de 2014, quando a polarização com Aécio Neves (PSDB) exigiu uma inclinação discursiva que se fantasiava de esquerda – esquerda, essa coisa gelatinosa da qual todo mundo fala, inspira toda a sorte de afetos, mas ninguém sabe exatamente como onde é rabo e onde é mão. Vale lembrar que, durante toda a campanha, Dilma jamais procurou se redimir e manteve a mesma atitude solenemente distante das bases que se movimentavam longe dos velhos sindicatos nas Jornadas de Junho de 2013 e que incendiaram as ruas das principais capitais do país. Assim como, jamais, nem uma vez sequer, convocou os trabalhadores à defesa da instituição da Presidência da República.

Foi incapaz e arrogante, não se dirigiu aos partidos de esquerda, aos sindicatos de esquerda, às centrais sindicais e aos movimentos. Seguiu solenemente rumo às composições com os partidos da ordem, seus velhos aliados e aos agrados com o famoso “centrão” – que nada mais é que aquela parcela dos deputados e senadores que não fazem voltas, são coerentes e consistentes com seus papéis diante da nação: não passam de representantes comerciais de frações burguesas regionais dispostos a vender os filhos ou o país para garantir os interesses mesquinhos de seus patrões.

*O texto é de opinião do autor e pode não expressar a opinião do jornal.

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