Helena Lima e Luiz Costa* – Redação UàE – 16/04/2020
A atual crise mundial da saúde pública não é um desfecho inevitável da pandemia do novo coronavírus. O colapso em muitos sistemas de saúde é fruto de sua profunda precarização provocada pelas crises econômicas do capital desde o final do século passado. Desde a crise do final da década de 1960 e início de 1970, passando pela crise de 2007 e 2008, tem ocorrido um intenso e nítido desmonte nos sistemas de saúde mundo afora.
A redução nos gastos destinados à área da saúde têm causado uma deterioração completa: redução de leitos hospitalares, piora das condições de trabalho, falta de investimento em infraestrutura e equipamentos, privatizações, corte no investimento científico para desenvolvimento de medicamentos e aparelhagem de saúde etc.
Um dos dados em que isso mais se evidencia é o corte nos leitos hospitalares em todo o mundo. Através dos dados sobre os sistemas de saúde disponíveis pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), é possível perceber, desde a década de 1980, uma queda contínua na quantidade de leitos hospitalares disponíveis por habitante na maioria dos 36 países computados.
São exceção à queda apenas a Coreia e a China, países com forte industrialização nacional, que tiveram um aumento significativo no número de leitos hospitalares neste período e hoje se destacam por terem saído mais rapidamente do crescimento exponencial de mortes causadas pela Covid-19.
Gráfico 1: Leitos hospitalares a cada mil habitantes.
Os países com a maior taxa de mortalidade pelo coronavírus, Estados Unidos, Itália, Espanha, França e Reino Unido, apresentaram uma redução significativa na quantidade de leitos hospitalares nas últimas décadas, como mostra o gráfico acima. O Brasil se posiciona ainda abaixo destes países, com um total de 1,95 leitos hospitalares para cada mil pessoas e uma taxa de mortalidade crescente. Enquanto na Itália, Espanha e EUA, países com maior número de mortes causada pela Covid-19 até o momento, há em média 3,1, 2,9 e 2,7 leitos a cada mil pessoas respectivamente.
Nos Estados Unidos, a redução de leitos hospitalares agravada na década de 80 é consequência da política do governo Reagan de diminuir os leitos para manter pelo menos 90% deles ocupados, aumentando os lucros nos hospitais. Nestas condições, qualquer epidemia ou surto de gripe acarreta em um colapso no sistema de saúde, como foram os surtos de gripe em 2009 e em 2018.
A nível de comparação, a pandemia do novo coronavírus chegou no Brasil em março com um índice de lotação dos leitos hospitalares causado por outras doenças próximo a esse patamar (90%), fruto de uma constante redução no número de leitos nos últimos anos.
A evolução da quantidade de leitos, no entanto, é um parâmetro insuficiente para entender o complexo desmonte dos sistemas de saúde. Segundo Éric Toussaint, as organizações multilaterais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional (FMI), e bancos regionais como o Banco Africano de Desenvolvimento, em conjunto com os Estados nacionais, defenderam sucessivas políticas neoliberais que deterioraram os sistemas de saúde após a crise econômica da década de 70.
As medidas de corte orçamentário em gastos públicos em todo mundo aconteceram sob o pretexto da necessidade de austeridade fiscal para pagar a dívida pública que os países acumularam como forma de enfrentar a crise.
A Itália, por exemplo, país com mais de 20 mil mortos e um sistema de saúde colapsado desde março, foi um dos países da União Europeia que mais sofreram com a crise econômica nos últimos anos. Em 2018, a dívida pública do país era de 134,8% do Produto Interno Bruto (PIB).
No mesmo ano, a Espanha registrava uma dívida de 97,6% de seu PIB. O país enfrentou forte recessão a partir de 2008 com o estouro da crise e o Estado implantou um plano de austeridade e reformas trabalhistas que facilitaram demissão. Em 2012, o desemprego estourou e passou de 26% no país. A União Europeia chegou a emprestar 100 bilhões de euros para salvar os bancos espanhóis. Em 2018, porém, o desemprego continuava alto, registrando 17%.
A emissão de títulos públicos e o consequente endividamento das nações só foi possível com cortes nos serviços públicos. Na Espanha, em conjunto com a política de austeridade, levando ao desmantelamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS), as medidas do Estado pretendem abrir espaço para o setor privado e as asseguradoras médicas. Essa política se demonstra pelo cortes nos salários dos trabalhadores da saúde, aumento das condições elegibilidade (que proíbem imigrantes de ter acesso à assistência), cobrança de procedimentos e medicamentos que antes eram gratuitos e cortes orçamentários que se traduzem em uma redução da qualidade e disponibilidade do atendimento e da infraestrutura. Essa realidade foi similar nos países mais afetados da zona do Euro, como Itália, Grécia, Portugal e Irlanda.
Situação no Brasil
No Brasil, a dívida pública cresceu R$ 2,75 trilhões na última década. Passou de R$ 1,49 tri em 2009 para R$ 4,24 tri em 2019. A medida, usada como remédio econômico, resultou no avanço do desmantelamento do sistema de saúde, que já estava sendo afetado desde o final do século XX.
Desde a pandemia de H1N1, em 2009, até a atual pandemia do coronavírus, o Brasil perdeu 48,53 mil leitos de internação no Sistema Único de Saúde (SUS). Somado aos leitos do setor privado, o Brasil conta hoje com 426,38 mil leitos, dos quais 298 mil são da rede pública — cerca de ¾ da população brasileira depende exclusivamente do SUS.
A redução de leitos, sobretudo no SUS, é agravada em relação ao aumento populacional de 15,6 milhões de brasileiros na última década. Ou seja, a população brasileira cresceu mais de 8% nos últimos 10 anos, enquanto o número de leitos do SUS reduziu em 12,6%.
Em relação aos leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva), no mesmo recorde de tempo, o número total aumentou de 42,4 mil para cerca de 60 mil, sobretudo no setor privado. Ainda assim, esse número está muito aquém do necessário. Dentre todas as unidades que atendem adultos, 90% já estão ocupadas devido a outras doenças. Dentre os leitos de UTI para adultos disponíveis no SUS, 14 mil dos 14,8 mil já estão em uso (95%).
Essa redução na estrutura pública de saúde é reflexo das políticas para conter o impacto da crise nos setores privados. Com o desenvolvimento da crise econômica de 2007 e 2008, o Estado brasileiro, seguindo a lógica mundial, tem aumentado a transferência de recurso do fundo público para o fundo de acumulação dos setores privados, em especial através do aumento da dívida pública.
Para sustentar o endividamento, os governos brasileiros vêm cortando gastos nos setores sociais. Na saúde, isso representou um verdadeiro desmonte que, em meio a pandemia, tem custado a vida de milhares de pessoas.
Ao analisar o orçamento executado para a assistência hospitalar e ambulatorial entre 2014 e 2018, observamos uma queda em termos reais no montante de R$ 3 bilhões — R$ 54,6 bi em 2014 a R$ 51,5 bi em 2018.
A partir de 2016, o Estado brasileiro constitucionalizou os cortes orçamentários nas áreas sociais através da Emenda Constitucional 95 (PEC do teto de gasto). Em consequência, os gastos do governo estão limitados ao valor utilizado em 2017 somado à correção da inflação. Para se ter uma ideia, de 2016 a 2019, houve um incremento de 27% na receita da União. Esse crescimento, porém, não é partido entre os gastos com políticas públicas, mas somente com as despesas da dívida. Em 2017, os gastos com os serviços públicos de saúde representavam 15,77% da arrecadação da União. Em 2019, os recursos destinados à área representaram 13,54%. Isso representou uma perda de R$ 20 bilhões na saúde apenas para o ano de 2019.
O que fazer?
A última grande crise capitalista não foi superada. Os resultados seguem sendo extremamente nocivos para o conjunto dos trabalhadores. A nova onda da crise capitalista já estava prevista para estourar neste ano, foi apenas catalisada pela pandemia. Do mesmo modo, a pandemia foi potencializada pela crise estrutural do capitalismo que se arrasta desde o final da década de 1970.
No Brasil, essa nova onda da crise representará uma maior desindustrialização do país e explosão do desemprego e da precarização das condições de trabalho. Com a pandemia e um sistema de saúde estruturalmente colapsado, somará a essa catástrofe a morte e o adoecimento de milhares de trabalhadores.
Em meio a isso, uma resposta é certa: esse modo de sociedade não pode continuar. Ou a esquerda apresenta um projeto de transição para outro modo de vida, um modo em que os grandes meios de produção sejam socialmente direcionados ao bem-estar de todos, ou tombamos. Na disjuntiva socialismo ou barbárie, somente o segundo projeto tem sido apresentado.
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