[Debate] Onde estão as entidades estudantis da UFSC?

Maria Alice de Carvalho* – Redação UàE – 08/06/2020

A crise econômica e a pandemia da Covid-19 assolam o país e carregam consigo a possibilidade de perda do sentido das universidades públicas brasileiras. O risco é que com a pressa em retomar as atividades de forma remota, se perca de vista o papel das universidades em oferecer uma formação completa a seus estudantes e de produzir um conhecimento científico, tecnológico e crítico de qualidade. Substituindo-a por uma máquina de emissão de certificados, que flexibiliza ao máximo a formação de seus estudantes, com a perda de parte importante de seus currículos e de atividades de pesquisa.

Na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a reitoria já desenha, junto aos seus comitês e Grupos de Trabalho (GT), um retorno às atividades pelo ensino remoto. As entidades estudantis, como o Diretório Central dos Estudantes (DCE) e os Centros Acadêmicos (CAs), em contrapartida, não apresentam nenhuma proposta de saída e intenção de organização dos estudantes nesse período de pandemia.

Frente a esse período excepcional, diversos estudantes devem se questionar se é possível que o movimento estudantil esteja à frente do processo e possa apresentar propostas mais certeiras em relação ao futuro das Universidades, visto que, no país inteiro, reitores e servidores têm discutido o tema com posicionamentos vacilantes e sem apresentar uma resposta universal.

É essa reflexão que o presente texto busca traçar, partindo do exemplo de como tem ocorrido na UFSC. De forma breve, as entidades estudantis são o Diretório Central dos Estudantes (DCE), os Centros Acadêmicos (CA) e a Associação de Pós-Graduandos (APG). Como reivindicação de longa data, os estudantes que compõem essas entidades participam também dos órgãos de administração central da Universidade, como o Conselho Universitário (CUn). Ou seja, possuem uma cadeira junto aos servidores em órgãos que debatem as principais questões da Universidade. 

A participação nesses espaços é de extrema importância, em especial para apresentar as questões daqueles que são a maioria nas universidades — os estudantes —, expressando a radicalidade política dessa categoria nos espaços de decisão centrais. 

Porém, alguns princípios importantes do que os estudantes podem fazer em locais como este foram esquecidos. E foram esquecidas também as outras formas de construir a política no Movimento Estudantil para além da atuação nos órgão colegiados, o que impede, inclusive, que as entidades possam expressar a radicalidade política do movimento estudantil nesses espaços de decisões. 

 

A política tocada pela atual gestão do DCE

O DCE tem se limitado, desde o início do isolamento social na UFSC, a realizar formulários de consulta e a reivindicar uma cadeira nos comitês e grupos de trabalho da reitoria. Em um momento em que é fundamental a organização estudantil, o DCE se reduziu a um mero órgão de consulta pública — que pouco faz com as informações que coleta — e a reivindicar um cargo em comitês cujo objetivo último é viabilizar a implementação do ensino remoto. Ou seja, ao invés de construir um movimento político junto aos estudantes, para que pudessem juntos analisar o atual momento da universidade e formular propostas, a principal entidade estudantil optou por administrar, junto à reitoria, o projeto que esta decidiu ser o melhor para a instituição.

À primeira vista, a atual gestão do DCE parece conclamar os estudantes à luta radical.  É assim que ela se apresenta à massa estudantil. Entretanto, é necessário  fazer um resgate histórico das experiências recentes e questionar se de fato, nos últimos dois anos, o DCE travou as lutas mais fundamentais aos estudantes. E se, agora, o está fazendo.

Para entender um pouco mais a atuação da atual gestão do DCE e o vazio político que tem deixado tomar conta desta entidade é preciso, portanto, retomarmos alguns elementos, sendo um deles o aparelhamento das entidades estudantis. O que se chama de aparelhamento, de forma resumida, é a tomada de entidades, que devem servir à construção da luta de sua categoria, por organizações ou partidos políticos que a utilizam para alcançar interesses meramente corporativos, como a busca de cargos e de ascensão individual de alguns militantes. 

Está longe desse texto defender que aqueles que compõem partidos e organizações políticas não devem construir tais entidades, pelo contrário, é seu papel como militantes fazê-lo. O problema é quando se constrói a entidade enfiando goela abaixo dos estudantes suas linhas políticas, sem debate algum, e tirando o potencial de transformação e criatividade política dessas entidades, impedindo o divergente de emergir.

Com as duas últimas gestões do DCE (2017-18 e 2018-atual), ditas de esquerda, essa prática ficou evidente e suas duras consequências vieram aos estudantes. A consequência maior talvez seja o distanciamento do DCE daquelas pautas mais caras aos estudantes, como são agora o ensino remoto e futuro da universidade. Para trazer alguns exemplos, diante da luta contra o Programa Future-se, contra os cortes orçamentários das Universidades, pela Moradia Estudantil e outras políticas de permanência, contra a precarização dos cursos e formações dos estudantes, o DCE não foi capaz de levantar essas pautas e lutas em quase três anos de gestão. Preferiu em todas as vezes seguir por vias burocráticas e dialogar com a reitoria, ao invés de organizar a luta com as massas estudantis.

Não à toa que passado esse longo período de gestão não há uma só pauta que o movimento estudantil conseguiu avançar através do DCE. Ao contrário, os movimentos de lutas que foram travados na UFSC nos últimos anos aconteceram apesar desta gestão — a greve estudantil de 2019, para citar apenas o exemplo mais emblemático, foi construída mesmo contra a vontade da atual gestão.

Movimentos espontâneos e por fora da entidade, como o Movimento de Luta pela Moradia Estudantil e UFSC Contra o Future-se, para apontar dois exemplos do último ano, tiveram que surgir na UFSC para enfrentar as lutas que o DCE deixou de lado.

 

Por que o DCE não convoca os estudantes à luta?

Apesar de nos parecer estranho, um DCE que não convoca os estudantes e que prefere dialogar com o gabinete da reitoria tem uma razão de ser. E aí voltamos ao tema do chamado aparelhamento. As organizações e partidos políticos que hoje compõem essa entidade, infelizmente, não a disputaram  por entender ser seu dever lutar pelos reais interesses da massa dos estudantes, ou por entender como uma necessidade a transformação profunda da Universidade, construindo um projeto verdadeiramente de esquerda para ela

A concepção de Universidade para muitas dessas organizações e partidos é de que esta não é uma instituição disputável dentro da sociedade capitalista; de que não é possível construirmos um projeto emancipador para essa instituição educacional. Sendo assim, utilizam o campo de lutas na Universidade apenas como uma escola de quadros políticos e como espaço de cooptação de novos militantes para atuarem após sua saída da Universidade, muitas vezes  em cargos do Estado como vereadores, prefeitos e deputados.

O interesse de algumas dessas organizações, ao tomarem uma importante entidade como o DCE, é fazer dela a plataforma de sua autoconstrução. E esse objetivo podemos dizer que alcançaram com sucesso nesses quase três últimos anos de gestão no DCE da UFSC, no qual pudemos ver organizações políticas como Juventude Comunista Avançando (JCA) e União da Juventude Comunista (UJC) inflarem.

O segundo motivo por não travarem as mais caras lutas ao movimento estudantil e, ainda por cima, boicotarem aqueles movimentos de estudantes independentes que vez ou outra surgem na universidade, é que para garantir a autoconstrução, é de fundamental importância para essas organizações que nenhuma luta real ocorra na universidade, que não se desenhe para o movimento estudantil uma outra possibilidade de esquerda. 

É apenas em meio ao marasmo e à frustração que a política mesquinha dessas organizações pode sobreviver e ser considerada como legítima na Universidade.

 

Quais são as nossas alternativas?

E no atual momento, apesar de sua tragicidade, ao invés de lutar pelos interesses e necessidades da categoria estudantil, a gestão do DCE permanece nessa lógica, como há anos, mais interessada em garantir seus interesses corporativos e de controle sobre o movimento estudantil.

Muitos podem se perguntar, porém, se essa lógica de disputa por cargos nos órgãos colegiado da reitoria não pode ser uma forma de representação dos estudantes. E, de fato, é importante. Mas uma política não pode se resumir a ocupar espaços nos quais historicamente os estudantes possuem ínfima representatividade, e nos quais muitas vezes não são escutados, como tem relatado a Associação de Pós-Graduandos da UFSC sobre as últimas reuniões na Câmara de Pós-Graduação (CPG). E não pode, de forma alguma, substituir outros espaços de construção política, e que são, na verdade, os espaços mais importantes, como reuniões abertas, assembleias, espaços de debate, elaboração de jornais e panfletos, entre tantas outras coisas que a criatividade política nos permite realizar.

As vias burocráticas e administrativas não podem fazer com que percamos de vista as outras formas de nos posicionarmos e reivindicarmos nossos interesses, como as greves que foram os poucos, senão únicos momentos em que de fato tivemos conquistas, como a manutenção de abertura do Restaurante Universitário já em tantos momentos.

Não é papel de uma entidade como o DCE ser apenas mais um gestor da universidade. Nesse momento, seria papel de um DCE estar debatendo com os estudantes o que estes pensam sobre o ensino remoto, se seus currículos cabem dentro dessa proposta, o que será decidido sobre as atividades de estágio, sobre as bolsas que foram cortadas ou diminuídas, o sentido que a universidade e alguns cursos podem tomar com essas alterações, dentre tantas questões.

Caberia a uma gestão comprometida, ao invés de coletar informações em seus formulários para disponibilizar à reitoria, construir uma real solidariedade entre os estudantes, através de canais de comunicação, onde pudessem saber uns sobre os outros e juntos pensarem sobre o futuro da universidade. Nesse momento nos encontramos tão distantes que sequer sabemos se um de nossos colegas estudantes foi infectado pela Covid-19 e qual a real situação de nossa comunidade universitária.

Por não apresentar um projeto de saída e de organização da luta dos estudantes, as entidades representativas jogam estes ao léu e os deixam à mercê das decisões que forem tomadas pelos órgãos colegiados sem um contraponto estudantil. Ao invés de se debruçar sobre as situações dos estágios curriculares, o DCE constrói junto à reitoria um projeto que deixa aos colegiados de departamento, isoladamente, tomar essa decisão. Que espaço os estudantes terão para apresentar o seu próprio projeto sobre isso? Caso não seja garantido pelas nossas entidades, seremos apenas carregados pela correnteza de implementação do ensino remoto a qualquer custo e de descaracterização de nossos cursos e da universidade.

Logo, fica a questão: que diferença tem feito termos mantido essa gestão de DCE para além do período de seu mandato? Em outubro de 2019, ao fim da gestão, seus integrantes defenderam a prorrogação da gestão para garantir a representatividade dos estudantes já que o processo eleitoral havia sido comprometido por conta da greve estudantil que lutou — vale lembrar, a contragosto do DCE — contra o Future-se e os cortes orçamentários. Agora, durante a pandemia, novamente a atual gestão defendeu sua prorrogação para permanecer representando os estudantes, tendo em vista a inviabilidade de realizar eleições presenciais. 

Mas, ao fim e ao cabo, os estudantes estão sendo representados em suas reais necessidades nesse momento? Percebe-se que não. E, afinal, os estudantes devem ser apenas representados ou construir a política junto à entidade? A ação política da base estudantil não deve se resumir ao momento do voto em uma ou outra gestão que debaterá e se posicionará por ela, mas sim em cotidianamente também construir a política na universidade. Sem que seja de tal forma, a entidade segue sendo utilizada para garantir os interesses corporativos daqueles que a compõem e efetivando os projetos da reitoria, ao invés de construir um projeto dos estudantes.

 

A importância das entidades estudantis e papel da base em disputá-las

As entidades estudantis, apesar de suas gestões, há anos comprovam sua importância e o quanto são determinantes na disputa pelo sentido da universidade, e a falta que fazem quando não estão lado a lado aos estudantes. Não podemos deixar que gestões irresponsáveis e descomprometidas com a base estudantil nos tirem esse instrumento tão importante para nossa luta.

Cabe a base dos estudantes da UFSC, portanto, disputar essa entidade e cobrar que ela sirva à construção de um projeto de educação e de universidade de acordo com um projeto estudantil, independente de reitoria ou de instituições externas à UFSC. Que essa entidade sirva à organização dos estudantes para estarem diariamente pensando juntos e na luta, e não imobilizados e isolados uns dos outros.

Cabe a base de cada curso realizar essa disputa também em seus Centros Acadêmicos, que em grande medida não têm se diferenciado da política do DCE. É comum perceber neste período de pandemia alguns Centros Acadêmicos que abandonaram suas reuniões semanais ou as realizam de forma fechada. As aulas estão suspensas, mas a política não. Muito pelo contrário: se tornou imperativo discutir, estudar, debater e desenvolver planos para enfrentar os ataques que virão acoplados no desenrolar desta crise econômica e sanitária.

É notável e de comum acordo que o momento é complexo e extremamente difícil, mas frente a isso cabe a nós nos reinventarmos e convocarmos cada vez mais pessoas a participarem ativamente de nossas construções, não o contrário. É a hora de repensarmos a forma de construir a política estudantil na universidade!

É trágico que não tenha surgido ainda na UFSC uma entidade que reúna estudantes dispostos a disputar politicamente a universidade nesse momento. Talvez o ensino remoto já esteja em vias de ser implementado. Mas não é tarde para disputar em quais termos isso será feito.

 

*Os textos de debate são responsabilidade de seus autores e podem não refletir a opinião do jornal

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