Clara Fernandez* – Redação UàE – 22/07/2020
Com a aprovação do ensino remoto no Conselho Universitário (CUn) da UFSC, uma afirmação que apareceu à exaustão em parcelas do movimento estudantil é de que foi aprovada uma política excludente porque não foram aprovadas também algumas questões defendidas como garantias estudantis. A saber: flexibilizar a cobrança de faltas e viabilizar uma porcentagem de realização de aulas e avaliações assíncronas (aulas gravadas e provas que não sejam realizadas ao vivo). Ou seja, se essas questões fossem aprovadas e todos tivessem acesso às ferramentas tecnológicas de qualidade, então o ensino remoto seria aceitável e evitaria evasão estudantil.
Aponta-se que isto é defender permanência estudantil, pois com a pandemia e a crise econômica há estudantes que estão trabalhando em horários que podem acabar chocando com aulas, ou mesmo que a instabilidade na internet e falta de um espaço adequado para estudar podem acabar interrompendo o acompanhamento das aulas ao vivo.
Quanto ao primeiro argumento, isso já era uma realidade da Universidade muito antes da pandemia. Conseguir acompanhar aulas e não deixar que o trabalho choque com as atividades universitárias é um desafio que está colocado há muito tempo para diversos estudantes universitários. E agora é ainda pior porque não é possível dimensionar os efeitos emocionais e físicos que todos os estudantes estão enfrentando dentro de suas casas quanto aos cuidados domésticos, familiares e mesmo o impacto direto com a pandemia em seus lares, que segue em franco crescimento no estado.
Ainda que possa ser mais fácil acessar uma aula gravada quando se trata de uma internet instável, como fica o espaço para interação com dúvidas e mediação dos conteúdos disponibilizados? Já os ambientes de estudo inadequados não deixam de ser uma realidade porque uma aula ou uma avaliação estão disponibilizadas posteriormente. Cômodos compartilhados, barulhos na vizinhança e empecilhos da rotina familiar em muitos casos podem não deixar muitas escolhas de horários com menores prejuízos quanto a questões de privacidade e silêncio. Há os que se verão obrigados a estudar de madrugada depois de uma rotina exaustiva durante o dia.
Esses elementos por si só deveriam bastar para que a ideia de um ensino remoto sequer fosse considerada nesse momento, que nada tem de viável quanto a condições adequadas para que se realize um processo de ensino e aprendizagem. Isto exige presença, interação humana e ambientes montados efetivamente para esse processo.
Mas ainda assim, é preciso considerar o que a defesa dessas garantias significam para o conjunto da universidade. Vejamos o caso da disponibilização de gravação de videoaulas. Alguém que faça um debate sério sobre educação pública e processos de ensino hoje, considera que assistir um vídeo gravado no youtube é uma aula? No máximo, isso será uma palestra ou uma formação gravada, remetendo a um telecurso 2000. Não dá para fingir que os estudantes terão a mesma condição de tirar dúvidas e tentar interagir com seus professores que os demais colegas.
Nesse caso, o que está sendo defendido é que o estudante numa situação mais degradante tenha acesso a algo ainda pior que o ensino remoto. Ou seja, que quanto pior a condição de vida de um estudante, um nível ainda pior de material oferecido como aula é o que lhe resta como tapa-buraco. Isso significa nos colocarmos em lugares ainda mais diferentes dentro da Universidade e são heranças que ficam para o depois, quando retornamos às aulas presenciais.
Por isso, essa proposta de gravação de aulas nada tem a ver com permanência estudantil. Ao contrário, o que ela garante é uma vinculação extremamente frágil com a universidade, o acesso ao que de pior pode restar de uma tentativa de aula para os estudante nas piores condições. É uma simulação de inclusão. E muito se assemelha ao que já se sabe fazer nas políticas de ensino básico que apenas mantém matrículas ativas, sem efetivamente vincular e produzir um desenvolvimento na educação de determinados estudantes.
É por isso que defender permanência estudantil não pode se desvincular da defesa de uma educação de qualidade. E isso significa não só uma oposição integral ao ensino remoto, mas que os estudantes deveriam ter sua formação como pesquisadores considerada como um investimento por parte da Universidade. A entrada em uma universidade é o início da formação de pessoas que deveriam contribuir com questões e soluções para os dilemas de nosso tempo, e por isso se deveria fornecer condições integrais para o desenvolvimento de todos que aqui entram — moradia estudantil e bolsa de estudos integral, apenas para começar — ao invés de bolsas precárias que tem de ser justificadas com trabalhos que por vezes nada tem a ver com pesquisa e extensão.
Isso é o que um movimento estudantil que se colocasse efetivamente ao lado da permanência poderia defender. E não que as pessoas tenham de se manter fazendo malabarismos para tentar fazer caber um currículo formativo dentro de uma rotina degradante no trabalho para se manter em uma capital.
Defender mecanismos como a matrícula em uma disciplina fantasma, obrigatoriedade de aulas gravadas e flexibilização na cobrança de faltas na verdade significa corroborar para que se maquie a verdadeira dimensão da exclusão que está colocada com a adesão do ensino remoto. A Universidade poderá dizer que não fez uma política tão equivocada assim porque inúmeras matrículas foram mantidas de forma fantasma. Essas tentativas de corrigir a política medonha que a reitoria está tocando, na verdade acabam por corroborar com os seus efeitos mais nefastos.
Além disso, há pouco tempo atrás vimos uma série de debates surgir nas Universidades em torno da questão de saúde mental. Estudantes que se viam pressionados frente a disciplinas e pesquisas muito mais voltadas a um produtivismo do que a uma relação verdadeira com processos de ensino, aprendizagem e produção de conhecimento. A retomada de aulas pela via remota também está imbricada nesse processo onde a lógica econômica prevalece sobre o que verdadeiramente são relações de ensino.
O que apontamos aos estudantes com esses supostos mecanismos de reparação ao invés de persistir no desvelamento da perversidade que está colocada com o ensino remoto? Que eles deverão responsabilizar a si mesmos caso não consigam acompanhar este modelo, pois “alternativas” foram oferecidas. Muitos podem acabar identificando a si mesmos como ineficazes quando não debatemos que na verdade a ineficácia reside no próprio modelo proposto, quando não apontamos que isto nada tem a ver com uma aula.
Não é a toa que o governo federal aposta em propagandas como as que vimos na campanha de inscrições do ENEM, pressionando estudantes de ensino médio a estudarem como der, mesmo que as aulas na educação básica também estejam altamente inviabilizadas e o ensino remoto esteja contando com um contingente enorme de evasões.
Há também implicações para o trabalho docente
Sabe-se de que uma boa parcela do professorado é corporativista, não se importando realmente com os estudantes. Contudo, não é por isso que devemos responder da mesma maneira. Em situações que achamos que estamos nos enfrentando com esse corporativismo, talvez só estejamos dando ainda mais brecha para este se firmar.
Em meio a vigência de um semestre regular, há professores que simplesmente se ausentam em meio ao mesmo para realizar suas viagens e colocam seus orientandos para dar aulas em seu lugar. Esses professores que pouco tem compromisso com suas atividades de ensino, na primeira oportunidade que tiverem de se ausentar para interesses pessoais quando as aulas presenciais retornarem, podem ter como herança do ensino remoto a disposição de aulas gravadas no moodle para manterem-se supostamente em atividade.
É preciso olhar também para a história de problemas políticos e amarras nas Universidades e nas políticas de educação que nos levam ao cenário do ensino remoto. O controle do trabalho docente é uma delas. Dizer como um docente deve realizar suas atividades na universidade, hoje, só tem nos levado a cercear o trabalho dos professores mais críticos dentro desta e a ter as relações de ensino cada vez mais lesadas. Essas são as implicações do PAAD, das políticas da CAPES e da CNPQ e das parcerias público privadas. E é o que programas como Future-se e projetos como escola sem partido vêm querer impor com ainda mais intensidade. O movimento estudantil deve corroborar com essa lógica que quer impor obrigações aos professores, que no fim nada tem a ver com garantir educação de qualidade, mas sim com responder às pressões por uma retomada econômica irresponsável?
Por fim, a UFSC hoje sofre com a não abertura para contratação de professores efetivos e substitutos. Contratos de substitutos já foram interrompidos durante a pandemia e há os que estão com os dias contados. Quando voltarmos ao presencial e continuarmos carentes de contratos docentes nos cursos, ter aulas gravadas à disposição pode ser uma forma de diminuir a urgência da contratação de professores e amenizar as pressões do movimento estudantil nessa direção. A exigência de aulas gravadas é algo que ajuda a normalizar a lógica de tapar buracos na Universidade, ainda mais que já é permitido que uma parte do contingente curricular presencial seja realizado à distância. Num cenário de contingenciamentos para às universidades e em que o governo federal vem restringindo às contratações, isto pode ter efeitos graves.
Contra tudo e contra todos?
Há os que compreendem que as críticas ao ensino remoto partem de um imobilismo, de uma defesa de que a Universidade não deve fazer nada nesse momento. Nada poderia ser mais falso. Essas críticas partem justamente da compreensão de que a universidade não tem como papel apenas as atividades de ensino, mas também a pesquisa, o estudo coletivo, os debates, a socialização do conhecimento e outras atividades que podem e devem ser fomentadas em um momento de crise como esse.
Por isso, ao invés da tentativa de administrar a Universidade junto à reitoria na implementação do ensino remoto, há caminhos sendo apontados como as atividades formativas complementares. Há também um movimento de enfrentamento direto ao ER, como no caso da Frente pela Educação de Qualidade. E estas não são as únicas possibilidades.
O movimento estudantil e a universidade ainda podem debater mediações mais coerentes, que levem em consideração o que os cursos mais prejudicados pelo ensino remoto podem fazer quando as aulas presenciais retornarem. Afinal, ainda vamos nos ver às voltas para lidar com os impactos futuros nos departamentos que certamente não terão como suprir atividades práticas com ensino remoto. Além disso, haverão cursos onde um grande contingente de estudantes não conseguirá acompanhar o ensino remoto e precisará ter garantido seu acesso às atividades apenas quando as aulas presenciais retornarem, o que levará a acúmulo de matrículas em disciplinas e outras atividades.
Ao invés de insistir que aulas fiquem gravadas para que estes estudantes a assistam quando der, podemos debater realocação de recursos e da contratação de professores em direção à cursos e departamentos mais prejudicados. Essa é uma forma de não excluir e poder atender posteriormente o conjunto de estudantes que mesmo que se esforcem ou queiram, não conseguirão acompanhar essa forma de aula.
A partir desses problemas também seria possível pensar alterações curriculares, o que de fato é coerente com uma formação, quais os caminhos que acreditamos que nossas disciplinas e a Universidade podem seguir.
É possível olhar para as problemáticas que se apresentam uma vez que o ensino remoto é implementado, não apenas de uma forma imediatista. É isso que nos permite oferecer saídas enfáticas para a universidade, ao invés de ajudarmos a afundá-la ainda mais na lama. Oferecer alternativas envolve algum grau mínimo de compromisso com os processos de ensino daqueles que aqui se encontram e com o sentido central dessa instituição de produzir e circular conhecimento que possa contribuir no enfrentamento a crise humanitária que vivemos e que marcará nosso século.
*O texto é de inteira responsabilidade da autora e pode não refletir a opinião do Jornal.