[Entrevista] “Não discutir raça é não discutir, em vários momentos, a condição da classe trabalhadora no mundo” 

Imagem: Colagem UàE

Júlia Vendrami – Redação UàE – 22/01/2021

O jornal Universidade à Esquerda entrevistou o pesquisador Márcio Farias, resultando em uma rica conversa sobre a relação entre o debate de raça, luta de classes e marxismo no Brasil, que está transcrita a seguir. A entrevista partiu de temas abordados por Márcio em seu artigo “Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil”, que está disponível aqui. Recomendamos a leitura do artigo também. 

Márcio Farias é doutor e mestre em Psicologia Social na PUC-SP e graduado em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011). Desenvolve pesquisa  sobre pensamento social latino americano e relações raciais, questão racial e lutas de classes na América Latina, trabalhadores imigrantes negros em São Paulo e Buenos Aires. Márcio também discutiu o tema das lutas de classe e raça no Brasil como convidado do Circulação da Balbúrdia, atividade promovida pela Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora Vânia Bambirra (EFoP). O vídeo da atividade pode ser acessado no canal do YouTube da EFoP

Universidade à Esquerda: Qual você acredita que seja a importância do debate de raça na luta de classes?

Márcio: Essa pergunta tem níveis conjunturais e estruturais, desdobra-se na análise da particularidade brasileira e ao mesmo tempo tem uma feição de mundialização do capital. Em linhas muito gerais, nas conformações, ao longo do século XX, das classes trabalhadoras em várias regiões do mundo, a raça foi uma variável importante no que diz respeito a vários aspectos da composição mais ampla da classe trabalhadora. Em geral, a raça foi uma variável que conformou a superexploração da força de trabalho em várias regiões. A superexploração tendo a raça como variável não é uma característica só da América Latina, ainda que na América Latina seja um modus operandi

Quando pensamos, por exemplo, na formação da classe trabalhadora no século XX nos Estados Unidos, a raça compareceu como uma variável que conformou não somente a exclusão e marginalização da população negra do mercado de trabalho formal. Mesmo quando pessoas negras compunham o trabalho formal, vemos que uma série de mecanismos se sobrepõem e compõem a precariedade do trabalho. Quando pensamos os aspectos políticos, percebemos menores condições de participação nos espaços da classe trabalhadora aos quais ela pertencia. Ou seja, um operário do setor fabril, no sindicato correspondente, não conseguia proeminência como liderança, nem espaço para pautar essas questões [o dilema racial] em um espaço de programa de sua entidade de classe.

Então a raça foi comparecendo enquanto variável da experiência de ser classe trabalhadora ao longo do século XX. Conformou superexploração, conformou o lugar que as pessoas ocupavam nas relações de produção e também explicou em alguma medida a marginalização, explicou em vários momentos a condição de trabalhador precário, explicou em vários momentos a condição de trabalhador informal.

O que chama a atenção quando fazemos uma leitura ampla ao longo do século XX da história entre raça e classe, é que em algumas realidades nacionais em que há pujança da presença negra ou de outro grupo racializado, como os indígenas na América Latina, essa relação foi de maior monta, foi mais explícita do que quando comparamos com o centro do capital, por exemplo. Mas esse processo teve metamorfoses ao longo do século XX. Por exemplo, quando observamos a Europa e os EUA ao longo das décadas de 60 e 70, houve uma nova configuração da classe trabalhadora naquelas regiões. Esses processos vão ganhando maior densidade e se comparam às realidades que outrora eram realidades cuja origem é de densidade racial. 

Então o que chama a atenção é que, em vários momentos, várias categorias clássicas que a gente trabalha no marxismo, para entender a configuração e fazer uma análise de conjuntura e de estrutura, como a teoria do valor, as relações sociais de produção, o conjunto mais variado que chamamos de superestrutura, os aspectos culturais, os aspectos jurídicos, enfim, as clássicas categorias que nos ajudam a entender as realidades, elas concretamente, historicamente, substancialmente só se efetivam na história tendo a raça como variável. Então não discutir raça no século XX é não discutir, em vários momentos, a condição da classe trabalhadora no mundo. 

UàE: Como você avalia a relação entre o movimento negro e o marxismo na militância brasileira?

Márcio: Controverso, mesmo. O marxismo foi por muito tempo uma das principais referências intelectuais e militantes no Brasil pós ditadura militar, com os principais instrumentos de entender o fenômeno da raça. Por exemplo, quando surge o MNU [Movimento Negro Unificado] no final dos anos 70, nós tínhamos um conjunto muito variado de quadros que tinham no marxismo, ou nos marxismos, uma referência para entender não só a condição da população negra, mas apontar um horizonte político. Essa relação entre o marxismo e o movimento negro foi sofrendo desgaste ao longo do tempo por uma série de motivos.

Um primeiro motivo diz respeito ao estatuto institucional dos principais veículos e instrumentos que a esquerda entendeu como suas principais plataformas: os partidos e os sindicatos. Os partidos e os sindicatos no Brasil, como qualquer outro fenômeno social, não estão alheios à vida em sociedade e muitas vezes há, no interior deles, reproduções sem reflexões mais apuradas de elementos da vida em sociedade. Então o machismo, o racismo, e outros fenômenos que em tese a vanguarda de esquerda com projeto civilizatório estaria mais atenta, por vezes aparecem nesses espaços.

Por muitas e muitas vezes a militância negra relatava muita dificuldade de pautar essa questão dentro do partido e de isso ser discutido dentro do programa, muitas vezes essa discussão pode ter sido negligenciada, uma discussão que nem chegou a um estatuto de discussão programática. Então um primeiro elemento que eu enxergo nesse processo é essa dificuldade no interior dos partidos e sindicatos, e algumas vezes nos movimentos sociais mais amplos, desse tema ser olhado com a devida importância. 

Isso explica que quando observamos os principais intelectuais negros que direta ou indiretamente se relacionaram com o marxismo, como o Clóvis Moura, uma fase da Lélia Gonzalez, o próprio Hamilton Cardoso, muitas vezes eles estiveram numa condição de produção teórica e política apartada dos partidos e movimentos, com uma certa autonomia, pois no interior dos partidos eles relatavam a sua dificuldade de fazer o debate.

É interessante observar a trajetória desses intelectuais pois eles estão alicerçados no marxismo direta ou indiretamente, mas distantes daquelas que seriam em tese as instituições divulgadoras do marxismo no Brasil. Isso não é uma característica só brasileira, podemos olhar para outras experiências.

Um segundo elemento importante é a forma como a população negra se inseriu no mercado de trabalho no pós-abolição. Via de regra, ao longo do século XX, foi o setor que compôs majoritariamente o que hoje enfatizamos como precários e informais, o subproletariado. Isso vai explicando certa debilidade de organização política em formas clássicas a partir de uma condição de classe. A população negra possuía uma vinculação muito frágil com o empregador e não teve na condição de trabalhador a forma de reivindicar seus direitos mais gerais. Mas isso escoou, via de regra, nos movimentos sociais.

Quando observamos os movimentos de moradia nas décadas de 60, 70, 80, principalmente no sudeste, quando observamos os movimentos de saúde, o conjunto dos movimentos sociais mais amplos que lutam por direitos sociais, a composição predominante desses grupos é de trabalhadores mais precários, que consequentemente têm acesso precário aos seus direitos. Mas que consegue, por essa via, reivindicar condições melhores de vida.

Não necessariamente esses grupos se identificam imediatamente a partir do pertencimento racial. O grupo é composto predominantemente pela população negra, mas a identificação muitas vezes não vem por essa via. Isso não elimina [o pertencimento racial]. Independente da capacidade do sujeito de entender o mundo, ele continua existindo e as correlações de análise precisam ser feitas. Ou seja, uma maioria negra, trabalhadora informal, por conta da sua debilidade na relação capital-trabalho, seus descontentamentos escoam em outras formas de se aglutinar e se organizar.

Esse é outro ponto que me parece importante porque se olharmos a trajetória do marxismo nas últimas três ou quatro décadas vemos que primeiro no campo internacional ele sofreu um revés dos mais difíceis com o fim da União Soviética, com a separação do marxismo de uma práxis, o marxismo foi se tornando teórico-abstrato, o que ajudou uma espécie de renovação do marxismo, mas o afastou muito das lutas concretas cotidianas. Por outro lado, ocorreu o avanço das teorias de muitas matrizes, chamadas de teorias pós modernas.

Eu tendo a questionar o emprego da ideia de pós-moderno porque é mais um espírito do tempo do que uma corrente teórica específica.

Em linhas gerais, as bases teóricas de algumas categorias que são importantes para análise da luta de classes foram se esvaindo, a ideia de totalidade, de trabalho, uma série de temas foram sendo secundarizados ou esquecidos. Isso acabou sendo um grande desafio teórico do marxismo porque essas múltiplas escolas do pensamento, digamos assim, são mais audíveis, pois dão respostas imediatas mais tangíveis. Sobretudo em um período não revolucionário, quando a revolução sai do horizonte. Então o marxismo tinha um desafio grande de permanecer com a sua validade analítica e uma das saídas foi o escapismo à realidade brasileira, extremamente racializada nos mais variados âmbitos. 

Somado às dificuldades que havíamos comentado no espaço político, o marxismo passou a se tornar mais um inimigo a ser combatido no enfrentamento ao racismo. A gente tem tentado atualmente separar o joio do trigo. Historicamente o marxismo foi o instrumento teórico dos mais importantes intelectuais que se debruçaram sobre o tema das relações raciais, em sua maioria negros, para tentar entender alguns aspectos da relação desse fenômeno, seja com a economia, com a política, com a cultura.

Figuras como Angela Davis, Clóvis Moura, Kwame Nkrumah, Amílcar Cabral, Walter Rodney, um conjunto muito variado de intelectuais que ainda hoje são muito importantes para o entendimento da realidade tiveram no marxismo sua referência de análise. Portanto, a ideia de que o marxismo não pode dar respostas sobre o tema do racismo, da raça, das suas variáveis não se efetiva na história. Por outro lado, é interessante observar como a esquerda brasileira hegemônica sequer ouviu falar desses intelectuais. A gente tem uma espécie de ode a certos nichos, espaços e escolas, a gente sempre se referenda nelas. Deixar de negligenciar autores dessa envergadura que debateram racismo nos ajudaria a dar saltos significativos no entendimento da realidade brasileira. 

Estamos em um período no qual a própria crise do capital mostrou que o capital tem seu limite e a população negra é quem vive os limites dessa forma societária. Portanto vamos precisar fazer um balanço; nesse balanço começa a se esvair um pouco um certo anti-marxismo no interior do movimento negro, que era parte justificável e parte que não tem fundamento, esse é o ponto. Tem uma análise que é pertinente, a negligência em relação ao tema, os embates no interior dos partidos e outros espaços marxistas mais amplos.

Há necessidade de um resgate, temos feito um debate teórico e um resgate de figuras como Angela Davis, Clóvis Moura, Frantz Fanon. Estamos neste momento de divulgação de teorias revolucionárias, mas precisamos abrir a janela para um terceiro momento, um momento de “o que a gente faz com tudo isso?” É preciso entender até onde esses intelectuais limparam o terreno e continuar o processo de edificar, nesse terreno que eles limparam, um edifício teórico que nos permita avançar em um projeto de transição, em um programa de enfrentamento mais consistente ao capital.

Esse é o próximo período, voltar a fazer a síntese desses acúmulos. Fanon discutiu violência enquanto um aspecto estrutural e conjuntural de sociedades outrora coloniais, então ele destitui uma espécie de estatuto ontológico da violência, e tenta entender a violência como uma forma política possível diante de certas condições. Por outro lado, não cai em uma espécie de bom mocismo em que a violência é um expediente que não poderíamos utilizar, caso necessário, no enfrentamento. Esse é um exemplo. Como uma discussão feita por Fanon nos anos 60 e 70 cabe no Brasil contemporâneo numa sociedade que vive uma espécie de guerra civil? Onde se encaixa pra gente entender o Brasil contemporâneo ou o mundo contemporâneo?

Da mesma maneira, a gente pode pensar na contribuição de Angela Davis e Clóvis Moura. Em Mulheres, raça e classe, Angela Davis nos ajuda a traçar um perfil mais fiel à gênese da classe trabalhadora brasileira, ampliar leques de interpretação, como ela se formou, nos ajuda a entender coisas que deixamos de lado e que podem ser úteis hoje em dia, como a composição de gênero nesses processos e as formas de aglutinação. Como a experiência dessas mulheres pode nos ajudar a entender como a classe sai de classe-em-si para se tornar classe-para-si. Pode nos ajudar a fazer uma genealogia mais consistente da forma de ser da classe trabalhadora no Brasil. Os exemplos são vários. A gente vai precisar ficar menos em uma ode epistemológica e mais numa leitura mais conjuntural programática: “o que a gente faz daquilo que fizeram com a gente?”, nesse atual cenário. 

Nesse sentido vejo sim, com todos os problemas e dilemas, o marxismo se tornando um farol para o movimento negro, para a juventude negra brasileira e acima de tudo para a esquerda como um todo.

UàE: Você poderia explicar melhor de que forma acredita que podemos absorver autores estrangeiros, como Angela Davis, em uma análise da realidade brasileira?

Márcio: Como Gramsci, ao discutir a questão meridional da Itália, fez análises universalizantes para a sociedade moderna, a Angela Davis, ao analisar alguns aspectos da sociedade estadunidense alçou categorias que são universalizantes, [que nos ajudam] quando fazemos, por exemplo, o debate de raça, classe e gênero. A Angela Davis lança questões para os EUA que, não pelas respostas que ela dá, mas pelas perguntas, podem nos ajudar a interpretar a realidade brasileira. Ao fazermos essas mesmas perguntas para a realidade brasileira, encontramos algumas questões que podem ter ficado para trás e elucidar temas que estão na pauta do dia.

Estamos vivendo uma classe trabalhadora que do ponto de vista da sua composição é muito feminina, sendo que há um diagnóstico de que as mulheres enfrentam mais impedimento de alçar espaços de poder, são mais impedidas de ocupar espaços de liderança, e isso também está presente na esquerda. Angela Davis mostrou, ao olhar a sociedade estadunidense, formas que em geral desconsideramos como formas políticas e que vão explicar, tantos anos depois, [a razão de] ela ter sido candidata à vice-presidência dos Estados Unidos pelo partido comunista.

Quais são os lastros de longo prazo que deram a ela essa condição naquele período histórico? Ela não é um ser iluminado que por si só se autodeterminou e alcançou a projeção que ela alcançou. Ela nos mostra qual era o solo fértil para frutificar figuras como ela mesma. Por exemplo, quando ela observa, no estudo sobre cultura e política, o blues e o jazz e a presença de mulheres negras, é muito interessante como ela vai mostrando que por meio da música essas mulheres não só tinham maiores possibilidades de ascensão social, visibilidade, prestígio, mas também como pela música elas faziam o diagnóstico do tempo da classe trabalhadora, como denunciavam a situação de opressão da população negra e da classe trabalhadora de forma geral, e isso com o tempo foi criando uma espécie de solo crítico fértil em que a própria teoria social foi conseguindo dar conta, porque a maior parte da população negra não tinha condições de entrar na universidade, nos partidos, mas o jazz foi essa espécie de elemento crítico que possibilitou que o grito dos excluídos fosse entoado. 

A gente pode fazer essa mesma pergunta para a realidade brasileira. Quais foram as condições que permitiram que hoje em dia nós tivéssemos uma espécie de solo fértil do debate da cultura e da política? Eu não consigo deixar de pensar na importância de uma Carolina Maria de Jesus como uma espécie de intelectual orgânica da classe trabalhadora, aquela que denuncia os males da república que não se efetivou, que grita que a favela é o quarto de despejo da sociedade. Ou seja, que denuncia um processo de urbanização tão excludente que forjou esses aglomerados urbanos em que as pessoas habitam de maneira tão precária, e indaga quais os desdobramentos desse processo todo. 

Eu não consigo pensar no Brasil em que o auxílio emergencial vai ser excluído e uma parcela ainda maior da população vai ficar na miséria e não pensar que o Solano Trindade já discutia isso na década de 50 em um poema lindíssimo falando “Tem gente com fome, tem gente com fome…”

Como foi possível ao jovem na década de 90 denunciar a putrefação do estado neoliberal no Brasil nas gestões do PSDB no plano federal, porque a esquerda estava combalida? Quem gritou que o Brasil ia de mal a pior foram os jovens das periferias urbanas através do hip hop.

Então a Angela Davis fez essa pergunta. A gente não vai derivar o que ela respondeu, necessariamente, tal como a gente não deve fazer com o Gramsci.

Gramsci estava discutindo a questão meridional, a relação entre sul e norte na Itália. Sobre como  é possível o sul agrário ser integrado à nação de uma maneira subordinada. A partir dessas discussões ele nos fez pensar em uma série de elementos sociais de configuração da estrutura agrária e industrial em que no interior dessas sociedades o agrário está submetido à indústria, o que vai na contramão de uma tese clássica da economia política.

Enfim, o Gramsci olhou Itália e nos ajuda a entender Brasil. Angela Davis olhou Estados Unidos e nos ajuda a entender Brasil. Da mesma forma, Lélia Gonzalez interpretou Brasil e precisa ser lida no mundo inteiro, pois ela alçou categorias universais.

UàE: Gostaria que você evidenciasse a relação entre a forma como o marxismo foi difundido e propagado no Brasil e os dilemas que enfrentamos hoje em relação à raça, assim como você descreve no seu artigo “Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de classe e raça no Brasil”

Márcio: Tivemos algumas fases do marxismo no Brasil que explicam uma certa ausência dos principais interlocutores do marxismo no que diz respeito às relações raciais.

O primeiro ponto seria a própria chegada do marxismo no Brasil. No começo, seria um marxismo de característica bastante experimental. A primeira geração seria como o Leôncio Basbaum, que era do Comitê Central do Partido Comunista Brasileiro na década de 20. É muito original a forma como ele aborda a história do Brasil a partir de uma leitura materialista, mas carente de categorias mais consistentes de uma teoria social marxista.

Posteriormente a isso tivemos uma “russificação”. Um processo de ingerência do partido comunista russo nas análises mundo afora, inclusive no Brasil, que consagrou uma série de erros históricos, inclusive sobre as relações raciais. Os marxistas brasileiros comungaram com as elites nacionais na ideia da democracia racial. Uma ideologia forjada pelas elites nacionais para explorar a classe trabalhadora, que acabou convencendo os próprios marxistas brasileiros. Isso foi um erro histórico dos mais veementes e explica até hoje certa dificuldade de entender a identidade nacional e como isso, a mestiçagem, que de fato é presente na população e sobretudo na classe trabalhadora brasileira, foi alçada à posição de ideologia, explicativa por si só.

Essa condição de mestiçagem fez com que não percebêssemos que a raça era uma variável que continuava incidindo na vida da classe trabalhadora. Esse foi o segundo momento, em que os problemas foram minimizados ou não discutidos.

Uma terceira etapa diz respeito à renovação do marxismo, que renovou conservando. Nós absorvemos Gramsci, Lukács, Althusser, escola de Frankfurt. Enfim, o marxismo se tornou mais complexo, saímos de um lamaçal, do marxismo esterilizado e fossilizado, mas por outro lado foi do abstrato ao abstrato. A realidade brasileira novamente escapou em vários aspectos da análise e o tema da raça foi mais uma das negligências que os marxistas da renovação conservadora nos outorgaram. Discutia-se mais o estranhamento e alienação em Marx, mais o jovem e velho Marx, do que a violência cotidiana que a classe trabalhadora enfrenta. Discutíamos mais a importância da tradução do alemão, quando traduziram os Grundrisse, do que as condições do transporte público no Brasil.

Nós enquanto marxistas viramos os exegetas nos autoproclamando, e ficamos quixotescos, achando que estamos lutando contra gigantes que na verdade não passam de moinhos de vento. Esse é um desafio que está colocado no marxismo ao longo de sua história. Do abstrato ao concreto complexificado, teremos que enfrentar uma realidade da classe trabalhadora expansivamente informal e precária, predominantemente negra, que vive os processos de violência no campo e na cidade, que vive uma experiência de negligência da sua dignidade humana nos mais elementares patamares do que é viver em sociedade.

O programa precisa derivar dessa condição e não de uma condição ideal de classe trabalhadora, esta é a classe trabalhadora que temos e é com esta classe trabalhadora que temos de consagrar um programa consistente. Temos de sair desse lugar messiânico e muitas vezes arbitrário de achar que se a classe trabalhadora não se identificar com aquilo que tem sido dito pelos marxistas seria quase um desvio cognitivo da própria classe trabalhadora, alheia e alienada de seu devir histórico.

É o contrário, a classe trabalhadora está bem atenta à sua condição de miserabilidade e quer respostas mais urgentes. Aí sim entram os problemas desse processo. Como ela é muito pauperizada, as condições que ela tem de se dedicar a uma análise com mediações que chegam a ser mais complexas são pequeníssimas. Então quem falar que vai acabar com a violência urbana— um de seus principais problemas — ela vai seguir, a classe trabalhadora vai se orientar por essa pessoa.

Acho que são esses os pontos que me parecem que vão se cruzando no tema do marxismo com o tema das relações raciais, porque se a gente for observar, no complexo da vida social brasileira não existe tema em que a raça não esteja colocada como variável. Vamos discutir classe trabalhadora no mais estrito senso. Se nós quisermos discutir a classe trabalhadora que mais se ferra no transporte público, vamos discutir a questão racial, se formos discutir o SUS vamos chegar na questão racial, se for a violência contra a mulher, enfim. Desafio a pensarmos um tema que a variável raça não é um dos elementos. Não o único, não uma categoria autoexplicativa, total, mas em geral ela se consubstancializa. Em geral ela se torna uma essência do fenômeno social, e se a gente agora quiser corrigir as rotas, os caminhos passam necessariamente pela absorção desses intelectuais que limparam o caminho e por começarmos nós mesmos a limpar a nossa parte do terreno e edificar esse projeto.

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