[Entrevista] UFSCàE entrevista Artur Gomes: o papel das atléticas no movimento estudantil

Flora Gomes – Redação UFSCàE – 29/05/2023

Hoje às 14h ocorrerá o “Debate com o Movimento Estudantil sobre os Impactos das Atléticas no Serviço Social”, como parte da programação da Semana Acadêmica de Serviço Social. O UFSC à Esquerda entrevistou um dos participantes da mesa, Artur Gomes de Souza, sobre o tema. Artur é professor de educação física, mestre em Educação (UFSC), doutorando em Educação (UFRJ) e militante do Coletivo Emancipação Socialista (CESO).

  • Qual a origem das atléticas e o papel cumprido por elas em sua fundação?

As atléticas acadêmicas surgiram em 1941, via Decreto-Lei (BRASIL, 1941) da ditadura de Getúlio Vargas. Na sua criação elas seriam um anexo do diretório acadêmica e sua composição seria feita por alunos.

Art. 2º A Confederação dos Desportos Universitários organizar-se-á de acordo com as seguintes bases, desde já em vigor:

Haverá em cada estabelecimento de ensino superior, um associação atlética acadêmica, constituída por alunos, e destinada à prática de desportos e à realização de competições desportivas. A associação atlética acadêmica de cada estabelecimento de ensino superior estará anexa ao seu diretório acadêmico, devendo o presidente daquela fazer parte deste.

As associações atléticas acadêmicas formarão dentro de cada universidade, uma federação atlética acadêmica, que estará anexa ao diretório central acadêmico da mesma universidade, devendo presidente daquela fazer parte deste (BRASIL, 1941).

A ditadura do Estado Novo é eivada de contradições, entre elas está um decreto de 1940 (BRASIL, 1940) que criava a obrigatoriedade da educação cívica, moral e física, assim como a instituição da Juventude Brasileira, movimento forte inspiração em três regimes: Alemanha, de Hitler; Itália, de Mussolini e Portugal, de Salazar. Nesse período a Educação Física era organizada pelo exército brasileiro. O livro de Castellani-Filho (1988) Educação Física a história que não se conta faz um levantamento das posições de supremacia racial e eugenia dos militares a frente desse processo, que compreendiam a melhoria do aspecto físico como quase uma purificação da raça.

No auge da repressão da ditadura empresarial militar, após a instituição do AI-5, em 1969 é criada a obrigatoriedade da Educação Física no Ensino Universitário.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o Parágrafo 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, DECRETA:

Art. 1º O artigo 22 da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, passa a vigorar com a seguinte redação:

“Será obrigatória a prática da educação física em todos os níveis e ramos de escolarização, com predominância esportiva no ensino superior”.

Art. 2º Revogadas as disposições em contrário, o presente Decreto-lei entrará em vigor à data de sua publicação.

Brasília, 25 de julho de 1969; 148º da Independência e 81º da República.

COSTA E SILVA

Tarso Dutra (BRASIL, 1969)

Tais normativas vinhas em consonância com a proibição da organização política estudantil, como forma de preenchimento do tempo dos estudantes, na tentativa de reduzir a força de contestação do regime ditatorial. É desse período que surge o Centro de Desportos e a Educação Física na Universidade Federal de Santa Catarina, para suprir a necessidade da realização obrigatória de Educação Física como parte curricular dos cursos de ensino superior.

Em 1971, outro decreto institui a tutela das atléticas sobre o corpo discente universitário, que agora seria obrigado a realizar a prática de Educação Física. Esse termo, “prática de Educação Física” retira da área a carga de conhecimentos disciplinares e é questionado por Castellani-Filho (1988) e demais autores. Com a redemocratização o campo progressista da Educação Física ira alterar tanto a nomenclatura como os objetivos da área. Tais movimentos e utilização da Educação Física era uma forma de combater as organizações autônomas estudantis, que mesmo clandestinas conseguiram, ainda em 1968, organizar o congresso da União Nacional de Estudantes.

Em 1964 foi proibida a organização estudantil em centros acadêmicos e na UNE, criando formas fictícias novas, como o diretório nacional dos estudantes, que promoveriam ações assistenciais, esportivas e sem envolvimento em mobilizações e movimentos políticos contestatórios do regime. A mesma lei fomentação a constituições entidades civis para desenvolvimento do desporto, em contraposição à adoção das atléticas como anexo dos centros acadêmicos, mas sempre com a tutela de um professor (BRASIL, 1964). No decreto de 1971, instituía-se a normatização dessa nova forma de socialização universitária. Descrevia da seguinte forma:

Art. 4º. A adequação curricular aos objetivos a serem alcançados em cada unidade escolar ou conjunto de unidades sob direção única, será realizada anualmente por intermédio de um plano, considerando-se os meios disponíveis e as peculiaridades dos educandos.

      § 1º A elaboração e a execução do plano de que trata este artigo serão da responsabilidade do diretor e dos professores de educação física do estabelecimento.

      § 2º No ensino superior, o corpo discente participará na planificação das atividades por meio da representação da Associação Atlética respectiva.

Art. 13. A prática da educação física no ensino superior será realizada por meio de clubes universitários, criados segundo modalidades desportivas ou atividades físicas afins, na conformidade das instalações disponíveis, os quais se filiarão à Associação Atlética da respectiva instituição.

      § 1º Os clubes de que trata este artigo, administrativamente dirigido pelos estudantes, desenvolverão atividades físicas supervisionadas pelos professores de educação física, por meio das quais os universitários saldarão os créditos a que estiverem obrigados.

      § 2º Ao matricular-se na universidade ou em escola isolada, o universitário filiar-se-á ao clube ou clubes de sua preferência.

      § 3º Por deliberação exclusiva dos próprios associados, cada clube poderá instituir taxa módica para melhoria das instalações e desenvolvimento das atividades e representações.

Em 1977, outro decreto (BRASIL, 1977) afirmava a obrigatoriedade do governo fomentar financeiramente as atléticas. Lia-se nele:

Art. 119.  Para efeito de sua organização e estruturação, o desporto estudantil será dividido em universitário e escolar. 

1º  O desporto universitário abrange, sob a supervisão normativa e disciplinadora do Conselho Nacional de Desportos, as atividades desportivas dirigidas pela Confederação Brasileira de Desportos Universitários, pelas Federações Desportivas Universitárias e pelas Associações Atléticas Acadêmicas.

Uma alteração feita em 1977 é a instituição dos professores como parte das atléticas:

Art. 133. As Associações Atléticas Acadêmicas, entidades básicas de organização nacional do desporto universitário, constituem os centros em que os desportos universitários são praticados.

Art. 134. Em cada instituição de ensino superior haverá uma Associação Atlética Acadêmica, com personalidade jurídica de direito privado, constituída por alunos e professores, destinada à prática do desporto e à realização de competição desportivas, e que será filiada à Federação Desportiva Universitária dirigente do desporto, no respectivo Estado, Distrito Federal ou Território.

 […] § 4º  Aos professores do órgão de direção desportivas da instituição será permitido integrar os órgãos e poderes das respectivas Associações Atléticas Acadêmicas.

A tutela estatal e dos professores sobre a composição e controle ideológico do que poderia circular incluso nos espaços esportivos era férrea e as atléticas cumpriram esse papel na ditadura de 1964. Entre suas atribuições estava descrito que:

Art. 136. Caberão às Associações Atléticas Acadêmicas as atribuições de planejar, coordenar e programar a realização das competições esportivas internas das instituições de ensino superior que representarem.

     Art. 137. As instituições de ensino superior deverão estimular a constituição das Associações Atléticas Acadêmicas, auxiliando-as com a concessão de recursos financeiros para sua manutenção.

     Art. 138. As atribuições de cada Associação Atlética Acadêmica, seu sistema de organização e forma de funcionamento deverão ser definidos nos respectivos estatutos, que serão aprovados pela Federação Desportiva Universitária a que estiver filiada, e obedecerão, em qualquer caso, ao regime das atividades acadêmicas da instituição de ensino superior a que estiverem vinculadas (BRASIL. 1977).

A função das atléticas foi, no Estado Novo, uma vinculação ao projeto de país de desenvolvimento nacional, pensada pelo exército como modelo de constituição da juventude brasileira, nos moldes dos regimes fascistas europeus. Posteriormente, no período da ditadura empresarial-militar foi utilizada como contraposição à organização política dos centros acadêmicos e UNE, com fomento financeiro e operacional estatal, incluso com a criação, por exemplo do Centro de Desportos e curso de Educação Física da UFSC.

  • Do seu ponto de vista, esse papel se atualiza nos dias de hoje?

São momentos políticos diferentes e não diria que cumprem o mesmo papel, de forma mecânica. Embora nos textos que tenho lido sobre a criação das atléticas, seu papel desmobilizador estudantil seja escondido. São criadas tradições inventadas de que elas teriam iniciado no século XIX, no Brasil e fazem uma ponte para os dias atuais, saltando toda a sua história e trajetória, suas ligações e papel nos regimes ditatoriais pelos quais passamos.

  • Nos últimos anos temos verificado um crescimento significativo das atléticas na UFSC. O que esse crescimento expressa acerca do movimento estudantil?

Na UFSC, foi tentada a sua formalização em 2012, que na época foi negada. Na época o entendimento do chefe de gabinete da reitoria era de que as entidades representativas dos estudantes eram o DCE e os Centros acadêmicos e que não caberias às Atléticas essa representação. Elas poderiam livremente exercer seu espaço sem contar com a regulamentação de uma autarquia federal. Posteriormente, em gestões do DCE de 2014 e 2015, houve um forte movimento para transformá-las em entidades representativas estudantis da universidade. No processo de tramitação acabaram tendo a constituição formal, na UFSC, muito parecida às empresas júnior, com a Resolução nº54/CUn/2015. Na época, a União Catarinense dos Estudantes se posicionou favorável a criação dessa regulamentação na UFSC, e membros do DCE, atléticas relatam ter realizado uma reunião com o Ministro dos Esportes da época. Essa forma do movimento estudantil atrelado ao Estado e também a patrocínios privados tem consequências para pensar a autonomia quanto a sua organização e pautas políticas. Percebemos uma tentativa de inserir as atléticas como contraposição aos Centros Acadêmicos, como uma coisa jovial, festiva e não política, que ensina o empreendedorismo, bem aos moldes do americanismo e da socialização via Netflix e sua indústria cultural.

  • Quais poderiam ser as alternativas às atléticas para pensar a organização de atividades esportivas no espaço universitário?

Primeiro de tudo, as atléticas acabaram sendo um espaço do empreendedorismo dos estudantes para buscar soluções à ausência de políticas de socialização universitária. Com o fim, por exemplo, da Copa UFSC, em 2011, começam a surgir novas atléticas. A ausência de espaços, repressão à organização de eventos de confraternização estudantil, a entrada da polícia no campus universitário para suspender a realização das festas são elementos que empurram parte dos estudantes para essa forma organizativa de socialização dos espaços universitários. Destaca-se que na tramitação do processo de regulamentação das atléticas na UFSC, uma das preocupações de um dos professores era de que as atléticas não realizassem festas. A tutela docente sobre as atléticas não é a mesma de 1964, porque não regulamentada por lei, porém me parece que a tutela dos setores privados que patrocinam as competições, hoje pode ser mais forte incluso que a docente, pela sua significação econômica na escolha dos destinos de como se organizam os espaços e jogos.

O evento ocorrerá na sala 217, no segundo andar do Centro Sócio-Econômico. 

A antiga gestão do Centro Acadêmico de Serviço Social (CALISS), que atualmente está em processo eleitoral, se posicionou contrário à existência de atléticas no curso neste ano. Confira a nota na íntegra aqui.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.617, de 15 de setembro de 1941. Estabelece as bases de organização dos desportos universitários. Rio de Janeiro, 15 de setembro de 1941. 1941. Disponível em: https://planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del3617.htm#:~:text=As%20pessoas%20naturais%20ou%20jur%C3%ADdicas,a%20auxiliar-lhes%20a%20manuten%C3%A7%C3%A3o. Acesso em: 24 maio 2023.

BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.072, DE 8 DE MARÇO DE 1940. Dispõe sobre a obrigatoriedade da educação cívica, moral e física da infância e da juventude, fixa as suas bases, e para ministrá-la organiza uma instituição nacional denominada Juventude Brasileira. Rio de Janeiro, 8 de março de 1940. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2072-8-marco-1940-412103-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 24 maio 2023.

BRASIL. DECRETO-LEI Nº 705, DE 25 DE JULHO DE 1969. Altera a redação do art. 22 da Lei nº. 4.024, de 20 de Dezembro de 1961. Disponível em; https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1960-1969/decreto-lei-705-25-julho-1969-374152-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 24 maio 2023.

BRASIL. LEI Nº 4.464, DE 9 DE NOVEMBRO DE 1964. Dispõe sobre os Órgãos de Representação dos estudantes e dá outras providências. 1964. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4464.htm

BRASIL. Decreto nº 69.450, de 1º de Novembro de 1971. Regulamenta o artigo 22 da Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, e alínea c do artigo 40 da Lei nº 5.540, de 28 de novembro de 1968 e dá outras providências. 1971. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/1950-1969/l4464.htm Acesso em; 24 maio 2023.

BRASIL. Decreto nº 80.228, de 25 de Agosto de 1977. Regulamenta a Lei n.º 6.251, de 08 de outubro de 1975, que institui normas gerais sobre desportos e dá outras providências. Brasília, 25 de agosto de 1977. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-80228-25-agosto-1977-429375-publicacaooriginal-1-pe.html Acesso em: 24 maio 2023.

CASTELLANI FILHO, Lino. Educação Física no Brasil: a história que não se conta. Campinas: Papirus, 1988.

 

 

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