Nina Matos – Redação UàE – 30/07/2020
Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.
A chegada da pandemia da Covid-19 no Brasil trouxe junto mudanças profundas nas rotinas de todos, em especial a estudantes, professores e demais trabalhadores da educação.
Assim que se deu a suspensão das aulas presenciais, as instituições de ensino, em especial na educação básica, quase imediatamente trataram de adotar o chamado “ensino remoto”, defendido pelo governo e demais entidades ligadas ao empresariado.
Com pouca ou nenhuma discussão, o ensino remoto alterou as relações da sala de aula, propôs um novo papel aos estudantes e professores e transformou radicalmente a rotina de muitos.
A escola é fonte importante de conhecimento, e toda a estrutura que garante que este conhecimento seja manejado pelos professores e aprendidos pelos alunos não pode ser transposta para o ensino remoto — seja pela falta de acesso de muitos e dos limites dos auxílios propostos para ampliá-lo, seja pelas questões pedagógicas que impedem que uma aula virtual seja propriamente uma aula.
Pensando no sentido do ensino remoto e expondo suas experiências, estudantes da Zona Leste de São Paulo escreveram um manifesto sobre o impacto do ensino remoto.
Neste manifesto, os estudantes relatam como tem sido penoso acompanhar as aulas sem ter o contato com seus colegas e como é difícil aprender quando não há mediação para além de vídeos dos professores explicando as tarefas. Além disso, muitos estão convivendo com o medo, com o luto, com as novas demandas dos cuidados com o lar, e mesmo reconhecendo a importância da educação formal, continuar as aulas dessa maneira não tem gerado aprendizados, apenas ansiedade.
É com a insatisfação de ver seus colegas sendo deixados para trás por uma política excludente de retomada da normalidade a qualquer custo que os Estudantes da Zona Leste de São Paulo — escolas regulares da rede estadual, Educação de Jovens e Adultos (EJA), Programa de Ensino Integral (PEI), ETEC (Escola Técnica Estadual) e Instituto Federal (IFSP) — assinam este manifesto.
No contexto atual, estamos passando por diversos problemas econômicos, sociais, políticos e também não podemos esquecer da pandemia que está assolando todos nós, mas com tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo ao nosso redor, não estamos conseguindo ver o problema da nossa educação. Os estudos são importantes para nos aperfeiçoar como pessoas, para assim colaborarmos para uma sociedade mais justa, e desta forma atribuirmos mais perspectivas de vida para a nossa e as próximas gerações. O ensino remoto não nos ajuda da forma que é necessário. É intolerante o fato de estudarmos presencialmente em todos os momentos da nossa vida, e, de repente, exigirem que nos acostumemos com aulas online.
Além do fato de que perdemos, nesse novo sistema, o contato com outros colegas de classe e da própria escola, coisa que facilitava, e muito, a aprendizagem sobre as matérias e sobre nós mesmos. É claro que atualmente essas trocas e contatos podem ser realizadas por uma vídeo-chamada e reuniões online, porém se torna algo bem mais distante, vazio, e que deixa alguns colegas de fora. Como consequência os alunos se sentem mais distantes da matéria, do professor e dos colegas de classe. Paulatinamente, os estudantes vão se afastando uns dos outros, ou se fechando cada vez mais em pequenos grupos. Se esse já era um problema na escola, quando acontecia (o que chamamos de “panelinha”), quando retornarmos, talvez isso seja muito pior.
Enfrentamos um período complexo, no qual jamais iríamos pensar algum dia vivenciar em nossas vidas, um momento em que as lacunas no mundo vasto e, principalmente, da educação brasileira são expostas para todos. A falta evidente de comunicação existente entre a corporação da escola para com os estudantes é algo que realmente desestimula, pois muitos não sabem como reagir. As práticas de EaD e seu estudo deixaram de ser um tema periférico e assumiram um lugar de destaque no cenário da educação brasileira e mundial. É uma ferramenta que precisa de sérios ajustes, e juntos, cremos que podemos buscar, criar novos meios, dentro deste mundo do ensino a distância, para buscar fechar o máximo de lacunas possíveis, mesmo que isto demande tempo e esforço extremo neste novo cenário caótico que estamos vivendo, coisa que a Secretaria de Educação não aparentou, devido a forma acelerada e sem diálogo que aconteceu toda a implementação do ensino remoto.
Muitos de nós, alunos, não acompanhamos mais as aulas disponibilizadas no Centro de Mídias ou pelo canal de TV. Claro que alguns têm complicações para acompanhar as aulas, mas o desinteresse é tão ou mais frequente quanto a dificuldade de acesso. Esse desinteresse aparece quando percebemos o quão difícil é se manter focado no conteúdo, quando não há interação ou quando simplesmente não aprendemos. A falta do ambiente escolar saudável é o que traz isso, a falta de um debate, da troca de conhecimento e ideias não só de aluno com professor, mas também entre os alunos. Há também os momentos em que durante uma aula, nos damos conta da defasagem de conteúdo que nos acompanha há anos, e isso só mostra que não adianta pegarmos o conteúdo, falta a atenção especial dada pelo professor para suprir o que precisamos.
Nas plataformas como o Classroom, alguns alunos acabam entrando, lendo as atividades, mas não entendendo o que foi proposto, tentam fazer, mas não conseguem. Talvez seja uma coisa absurda para alguns, contudo realmente têm pessoas que não estão conseguindo se concentrar nas atividades, não estão entendendo da forma que o professor explicou, ou o vídeo que o professor mandou. Na escola era difícil todos entenderem a matéria, fora da escola essa situação é ainda pior. É algo que todos precisam de muito esforço para conseguir realizar as atividades que tem dificuldade, e como estamos em um momento como esse, acaba que não conseguimos dar o nosso melhor, ou nem tentar, por acabar pensando no que pode acontecer, como vai acontecer, o que pode vir pela frente, como vai ser daqui cinco meses, se terá melhorado, ou piorado. Estamos ansiosos e aflitos. Não podemos controlar nossa mente, e por isso chegamos a pensar em coisas ruins, coisas que talvez não aconteçam, mas por estarmos tão perturbados com tudo, nossas mentes chegam a ter esses pensamentos, que normalmente nos sabotam, nos desanimam e fazem com que muitas vezes desistamos de fazer o que foi pedido de nós.
Entendemos que as escolas tenham tomado a posição de prosseguir os estudos a distância como forma de proteção e melhora a todos, porém, é visível que nem todos os alunos e professores tenham a capacidade de se adaptar a esse novo método de ensino. Estamos passando por uma época nova e bem tensa em que muitos dos nossos queridos familiares e amigos estão sofrendo e nós também estamos. Por diversas experiências que ouvimos e até vivenciamos, esse tempo está sendo favorável para o aparecimento de problemas psicológicos e para agravar os que temos. Presenciamos situações de doença que nossos próprios familiares quase vieram a falecer, e nesse momento além de auxiliar essa pessoa, ainda o estudante tem que tratar de seus problemas pessoais, sem contar que os problemas psicológicos de toda a família se agravam. Portanto, estamos tendo algumas responsabilidades que não esperávamos. Os problemas variam de família para família, mas no geral não conseguimos acompanhar com total eficiência esse novo método de ensino apresentado. A sensação que temos é de completar atividades apenas por nota e aprovação, e não para realmente aprendermos alguma coisa. Admiramos as tentativas das escolas, mas o sistema vem sendo muito falho.
A maioria dos professores dá o melhor deles para nos ajudar, eles se preocupam. Às vezes, até acabam passando o número de WhatsApp pessoal para poderem tirar dúvidas, conversar, ver como anda a nossa vida, e ter a conversa que normalmente não teríamos na escola. Nós alunos vemos isso nos professores que temos uma certa amizade. Até mesmo eles, professores, estão em um momento difícil, em um momento que só querem se desligar desse mundo e tentar ter paz das notícias ruins, e de toda essa tragédia. Não podemos cobrar do ser humano que dê o seu melhor em um momento como esse, e não podemos nos afundar nisso tudo. É nossa humanidade que está em jogo.
Um problema gravíssimo é que não buscaram se informar sobre as situações que cada um de nós passamos dentro de nossas casas, onde é exigido da grande maioria que faça serviços domésticos. Não saímos de casa, tudo se suja facilmente, tudo é bagunçado com maior facilidade, e enquanto é exigido que nossos responsáveis saiam para trabalhar, somos nós que tomamos a responsabilidade de cuidar de nossos lares e dos nossos irmãos. Enquanto há dias que conseguimos silêncio para assistirmos aulas, respondermos e entregarmos as atividades, há outros que temos que optar por estudar ou cuidar da casa. Podemos ser jovens e não ter muitas responsabilidades como os adultos, mas isso não muda o fato que temos nossas obrigações em casa, e como na pandemia tudo se misturou, é claro que o ensino online também se misturou com o tempo das obrigações em casa, isso causa um estresse enorme na gente e pode prejudicar nosso desempenho tanto nas atividades escolares quanto nos afazeres em casa, e também pode afetar nosso psicológico.
Os alunos que trabalham, mudaram completamente de vida. Alguns começaram a trabalhar antes da quarentena, e essa nova rotina acaba sendo puxada para essas pessoas, porque vem o cuidado dentro e fora de casa, novos procedimentos de cuidado com o corpo, que acabam tomando tempo, responsabilidades que surgiram na pandemia, e que acabam sendo elementos que dificultam na realização de alguma atividade da escola por conta do tempo que parece ter ficado menor, pois começaram a ter mais coisas a fazerem. Já as pessoas que começaram a trabalhar na pandemia, acabam tendo várias dificuldades também, principalmente de conseguirem se organizar. Para todos está sendo difícil, claro. Mas como foi dito, estamos passando por uma coisa nova, completamente diferente, responsabilidades vêm e vão, algumas surgiram nesse momento completamente difícil, e acabamos fazendo por estar precisando colaborar com despesas de casa.
Falar sobre o ensino remoto é uma coisa muito relativa. Temos em cada casa uma situação diferente. Alguns alunos têm mais acesso que outros e isso acaba prejudicando muitos estudantes. Algumas casas possuem uma qualidade de internet que é deplorável, alguns nem têm rede de internet e outros precisam usar seus dados móveis. Em outros casos não há aparelhos suficientes para o tanto de estudantes no mesmo lugar. Se formos colocar na balança algo assim, muitos alunos são prejudicados diariamente com essa situação. E não se pode esquecer que além de problemas de acesso, alguns possuem sérias dificuldades da utilização dos aparelhos digitais, por justamente nunca terem tido condições de possuírem um, e nas escolas nunca terem tido aula de como usá-los. Pedir que vejam tutoriais explicativos, com internet limitada, é não só uma ofensa, mas uma exclusão velada, pois o que o governo tem dito é que está oferecendo, aparentando que são os alunos que estão abandonando por simplesmente quererem.
Sabemos que não tem sido fácil para absolutamente ninguém, não tem sido fácil para os alunos, professores, pais, e diversas outras pessoas, ainda mais aqueles que não têm acesso a um dispositivo com internet, que é o caso de muitos discentes. Vários estudantes da escola pública que não possuem um celular ou internet, sentem um enorme desespero, esses alunos não conseguem estar informados das atividades, não conseguem assinar presença no que consta ser uma lista de chamada, não tem ideia de qual o assunto abordado da aula. Estão à deriva. Fora todos os problemas financeiros que se agravaram nesse momento, com pais sendo dispensados de seus serviços em vários casos, ou com os pais se expondo a riscos em situações bem desestabilizadoras. O que nós estudantes pedimos, é o máximo de compreensão, e paciência. Todos temos sofrido muito, externamente e internamente também. Sentir cobrança de algo que para muitos não é acessível, é difícil de lidar, que os adoece, e com chances grandes de desistirem do ano, uma vez que o mesmo se mostra um ano perdido. Então o que pedimos é compreensão, e se possível, melhores recursos para não perdermos totalmente este ano letivo, para toda essa preocupação não ter sido em vão, e que não sejamos esquecidos, visto que diante da não diminuição de casos de pessoas infectadas e do número de mortes, será impossível retornarmos à escola tão cedo.
Não se pode esquecer também dos estudantes que retornaram ao ensino, conhecidos como alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ao retomarem seus estudos a grande expectativa era de o realizarem na forma presencial, entendendo que a explicação do professor e a interação com os colegas de classe fossem elementos determinantes para o aprendizado e para diminuir as dificuldades encontradas. Com o ensino remoto tudo isso se perde, as atividades se tornam muito mais difíceis de serem realizadas, ainda mais dentro da rotina de responsáveis pelos seus lares. Outro fator é a demanda de exercícios que chega para tentarem dar conta do semestre (que na verdade equivale a um ano letivo para esse grupo), e nem sempre sendo possível entregá-los no período estipulado pelos professores e escola.
Outra problemática assustadora diretamente relacionada à educação em 2020 é o futuro. Muitos alunos estão atualmente cursando os anos finais do Ensino Médio, um período essencial na formação do indivíduo como profissional e cidadão, e estão sendo terrivelmente prejudicados pelas negativas desse EAD forçado e falho, o que culmina em temor, temor por nossos futuros vestibulares e concursos públicos, por nossa sobrevivência em uma sociedade capitalista, uma vez que a educação, aquela que nos promete futuro melhor, hoje só nos faz colecionar diversas deficiências acadêmicas – e emocionais relacionadas a elas. Estamos com medo; sentindo a todo instante que a estrada sob os nossos pés avança enquanto nós somos mantidos estáticos, vulneráveis a todo tipo de ferimento, desde os mais rasos aos mais profundos, que podem vir a se tornar cicatrizes eternas dentro de nós.
Se não bastasse todas essas situações, acontecimentos como o ocorrido em aula online na ETEC (Escola Técnica Estadual) – em que o professor se masturbou durante a aula -, demonstra uma falta de respeito com os alunos da instituição, pois mesmo não estando em sala de aula, os alunos e professor têm que manterem o respeito pelas pessoas presentes no momento, Além de todos os problemas elencados, ainda é necessário lidar com esse tipo de situação que é pouquíssimo debatido nas escolas, que é a questão do assédio que estudantes “passam nas mãos” de seus professores, seja ele assédio sexual, como neste caso, quanto em assédio moral, quando dizem que somos incapazes e outros tantos termos que destroem nossa autoestima. Talvez num período como esse, de ensino dado pelas tecnologias, debates dessa natureza fossem mais importantes e cruciais do que nos fecharmos em conteúdo que não conseguem dialogar com as questões e dilemas que estamos passando.
Diante desta situação que vivemos, a impressão que nos passa é de que o governo quer nos sobrecarregar com atividades diariamente, numa falsa ilusão de rotina, que no atual contexto é impossível. Nem todos nós estudantes temos realmente o tempo para darmos atenção a isso, por mais que seja sim uma obrigação nos dedicarmos ao nosso estudo, entretanto estamos cansados. Estamos lutando contra essa pandemia, esse momento de caos no mundo todo, mas também queremos a força do lado dos estudantes, para ouvirem nossa voz, para que as escolas nos escutem, que deem espaço para nos conhecer, verem e saberem que estamos EXAUSTOS.
Nunca se deve perder de vista que a educação é um trabalho que lida com humanos, nós não somos máquinas. Nós temos sentimentos, sofrimentos, angústias, alegrias, medos, tudo se manifesta nesse período de maneira mais acentuada. E para não se perder nesse momento, precisamos nos preocupar com todos ao nosso redor, precisamos ver o que realmente é necessário a se fazer em um momento como esse. Não podemos cair numa lógica em que o ser humano vai deixando progressivamente de lado o que é ser de fato humano. Estamos sendo pressionados, sem dizer o que e como sentimos, e como estamos. Estamos levando isso, guardando tudo, como se algum dia não fosse acabar com a nossa mente, e muitos não se dão conta que está acabando com ela. Sobre todos esses problemas que o ensino remoto acarreta, outra impressão que temos é de que não verão isso até se tornarem mais recorrentes crianças e adolescentes com sinais de ansiedade ou talvez algo pior. Quantas crises já foram observadas nas escolas? O que as escolas fazem nesses casos? Não podemos jogar nossa saúde fora por causa de notas, já não estamos bem agora e o após? Com o acúmulo de estresse como ficaria? Acham mesmo que as atividades online preparam os alunos para os vestibulares? Acreditam que estamos aprendendo algo? É melhor começarmos a responder essas questões e também a fazer algo antes que algo ruim aconteça.