O que as políticas públicas revelam sobre o papel do Estado?

Foto: Construção de Brasília. Reprodução / Arquivo Público.

Morgana Martins – Redação UàE – 11/06/2020

Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.

A discussão sobre o papel e a especificidade do Estado na sociedade capitalista sempre foi uma das importantes tarefas dos socialistas; e, agora, frente a uma crise estruturante do capital e com a chegada da crise sanitária, não podemos perder de vista alguns elementos que nos são apresentados e que contribuem para o debate sobre o Estado.

Em um momento de crise e calamidade, o que é esperado pela população do  Estado é a garantia mínima de vida: auxílio financeiro emergencial, serviços de saúde de qualidade e de forma gratuita, produção de testes, medicamentos e equipamentos de proteção contra o vírus, controle dos preços de produtos e serviços essenciais para a família (alimentos, gás, água, energia), garantia ao trabalho, entre outros.

Porém, se olharmos para a situação atual do Brasil, percebemos que o Estado não dá conta dessas questões, que requerem, por exemplo, a estatização da produção de produtos e serviços essenciais, o fim das patentes sobre pesquisas, medicamentos e equipamentos de proteção, a taxação de grandes fortunas, entre outras possibilidades. Inclusive, faz o contrário disso, pois os gestores do Estado estão mais interessados em garantir o lucro de grandes capitais, aliados à grandes empresas e bancos, que em garantir as condições mínimas de sobrevivência da população.

Um exemplo disso se expressa na defesa realizada por Bolsonaro, atual presidente do país, pela continuação da normalidade do trabalho, da produção de mais-valor pelos trabalhadores a ser apropriado por seus patrões, ao invés da defesa pela segurança e saúde desses trabalhadores, que poderia ser garantida por medidas do Estado para que permanecessem em casa com condições de reprodução de sua vida e de sua família. E já não fosse isso tão trágico, o Estado ainda o realiza com um discurso falso de que o que lhe importa é a garantia do direito ao trabalho aos mais pobres; uma prova do contrário é alta taxa de desemprego no país.

Mas isso é apenas um exemplo da contradição em assegurar a uma instituição, como o Estado, o dever de garantir as condições mínimas de vida da população, através principalmente de políticas públicas, ao mesmo tempo em que ele possui um papel, na sociedade capitalista, de garantir a manutenção dessa forma social específica. Dois papéis que são impossíveis de serem cumpridos ao mesmo tempo, pois, como garantir a produção de vida humana ao mesmo tempo que a destrói para sustentar o princípio do predomínio do capital?

Para continuar tal discussão, utilizemos o exemplo da situação dos moradores de rua, forma de produção de vida presente em nossa história já há séculos. Iniciada a quarentena, ou, pelo menos, a tentativa de realizá-la, muito se tem questionado como os moradores de rua passariam por essa pandemia, tendo em vista que não possuem acesso a água e nem mesmo a possibilidade de fazer o isolamento social, pela falta de moradia. Para contribuir com esse debate candente da conjuntura, o UFSC à Esquerda e a EFoP – Vânia Bambirra realizaram um evento, no último dia 9, para discutir a situação dos moradores de rua na pandemia, a discussão do espaço  apontou algumas questões fundamentais que valem ser trazidas aqui.

Foi em 2009, com o Decreto Presidencial 7.053, que foi instituída a Política Nacional para a População em Situação de Rua e, a partir daí, a população de rua passou a contar com políticas de assistência social. Além disso, organizações mundiais, como a ONU, sempre buscam apresentar algumas diretrizes para pensar a situação dos moradores de rua.

O que todas essas políticas e diretrizes possuem em comum é que buscam administrar uma situação, a situação de morar na rua, e, por isso, a instauram como um direito. Mas como é possível tratar de morar na rua como um direito, quando sequer é apresentada uma outra opção? Pessoas que “optam” por morar na rua por não conseguirem um emprego – ou por terem um que não garante seu sustento -, por sofrerem violência familiar e não terem outro lugar onde morar, por buscarem em outra cidade, estado ou país oportunidades de trabalho que não encontram, por não conseguirem sustentar seus vícios – que são na maioria das vezes um escape -, por não conseguirem bancar um aluguel exorbitante, por serem despejadas, violentadas pela polícia, ou por diversos outros motivos que para uma pessoa se apresenta como única a saída de morar na rua.

Com essa reflexão, podemos pensar as políticas públicas como um espaço de contradição. Isso porque, utilizando ainda o exemplo dos moradores de rua, o mesmo Estado que despeja famílias de suas casas para realizar grandes construções – como ficou explícito nas mega construções dos estádios para a Copa do Mundo de 2014 – propõe políticas de mediação para que a existência desses moradores de rua seja garantida.

As políticas públicas e serviços da assistência social que têm como público alvo essa população, como CREAS e Centro Pop, apesar de cumprirem um papel importante e de caráter imediato na vida de muitas pessoas e de criarem uma rede de apoio e, muitas vezes, de afeto, não possuem como objetivo final apresentar uma saída efetiva para essa condição de extrema pobreza. Não dá conta de dar as condições para que essas pessoas deixem de passar fome, de passar frio, de terem doenças pulmonares por dormir na chuva dias a fio, de ficarem expostas a condições sanitárias deploráveis e de serem acordadas por cassetetes, sprays de pimenta ou jarradas de água da polícia. Por isso, não podemos nos enganar com a apresentação dessas políticas como um direito. Elas representam, justamente, a falência do Estado de direitos.

São políticas que, assim como outras da assistência social, existem apesar do capitalismo. Ou, até mesmo, para sua manutenção e perpetuação. Isso porque elas aceitam as formas desumanas de produção de vida e as colocam no campo da normalidade e, assim, amenizam contradições passíveis de revolta. Isso nos leva a conclusão de que, para resolver efetivamente um problema como o é a falta de moradia, é preciso dar fim a organização da sociedade da forma como a conhecemos, pois o capitalismo e o Estado que ajuda a administrá-lo já se mostraram falhos e incapazes de responder às nossas questões.

Por mais que os moradores de rua parecem não estar atrelados a estrutura fundiária do trabalho, eles possuem uma função social específica do ponto de vista das classes dominantes. Como parcela extremamente precarizada da classe trabalhadora, sua existência demonstra que há uma condição pior de vida sem o trabalho. E a eles, é oferecida apenas a porta de saída da exploração pelo trabalho.

É preciso um projeto de sociedade no qual não prevaleça a especulação imobiliária e a moradia não seja considerada uma mercadoria, mas sim de fato um direito a todos. No qual os preços dos alimentos, da água, da energia, das vestimentas não sejam exorbitantes e fruto de endividamento dos trabalhadores. No qual através de nosso trabalho consigamos de fato nos manter e não nos destruir.

E se, com todas essas condições, uma pessoa escolher produzir sua vida e subjetividade morando nas ruas, ela terá essa escolha respeitada e terá espaço para tal. Assim, talvez, essa condição poderá ser tratada como uma escolha individual – quem sabe. Mas enquanto ela for fruto da miséria produzida pelo capital, ela deve ser tratada como um problema coletivo e com uma saída, com certeza, apenas coletiva.

É urgente que formulemos uma nova ordem, uma saída que não seja pela via da exploração ou da extrema miséria. Que chutemos esse Estado e produzamos, de forma emancipada, o nosso projeto de sociedade e como queremos viver.

*Os textos de debate são responsabilidade de seus autores e podem não refletir a opinião do jornal.

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