[Opinião] Reforma Administrativa: destruição do serviço público?

Imagem: divulgação do evento realizado pela EFoP

Flora GomesPublicado no Universidade à Esquerda – 09/08/2021

No dia 17/08, às 18h, a Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora (EFoP) realizará o debate: “Por que a Reforma Administrativa é um ataque a todos os trabalhadores?”, com a Prof. Dra. Selma Venco. Até lá, o Universidade à Esquerda irá publicar diversos textos para contribuir com as discussões. O evento visa trazer questões que possam ser úteis às mobilizações que têm sido organizadas para combater a Proposta de Emenda Constitucional 32/2020, que visa atacar o regime de trabalho dos servidores públicos. 

Sobre a PEC 32/2020

A Reforma Administrativa tem sido defendida pelo Governo desde o início de seu mandato. Sob argumento da necessidade de conter “gastos” – isto é, o pagamento dos trabalhadores -, pleiteia-se alterar as disposições constitucionais atuais sobre os servidores públicos. Pela legislação atual, estes, assegurados por seu estatuto, são contratados por meio de concursos públicos, podendo executar suas atividades com estabilidade após o período de estágio probatório. Apesar de algumas brechas legislativas, a contratação majoritária para a execução de atividades no setor público  ainda é via concurso.

A contrarreforma incluiria servidores das três esferas de poder (executivo, legislativo e judiciário) e das três esferas da federação (União, Estados e Municípios). Contudo – e este é um aspecto fundamental para compreender o caráter da reforma – algumas carreiras estariam excluídas da reformulação. Membros do alto escalão como parlamentares, juízes, diplomatas, desembargadores, ministros, procuradores e militares não seriam atingidos.

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Segundo a redação original, poderiam ser estabelecidas diferentes categorias empregatícias a depender do cargo, por prazo determinado,  cargos de liderança e assessoramento seriam modalidades de ingresso sem a mediação de concurso. A realização do concurso público caberia para cargos por tempo indeterminado, vínculo por experiência e cargo típico do Estado. Salvo este último, a estabilidade não estaria garantida aos demais trabalhadores. A PEC também permitiria a contratação temporária mediante processo seletivo simplificado. Os servidores em serviço não seriam atingidos de imediato pela nova resolução. 

Diversos direitos ficariam excluídos dos contratos: como progressões por tempo de serviço e reajustes salariais. Além disso, ficaria vedada a diminuição da jornada de trabalho sem a diminuição proporcional da remuneração. 

A importância da função pública

A Prof. Dra. Selma Venco vem realizando diversos estudos sobre este tema. Nossas apreciações nesta seção foram baseadas em seu artigo: “O crepúsculo da função pública: distopia ou realidade?”, em co-autoria com Flávio Sousa (2021) [1].

Durante o período colonial, a ocupação de cargos administrativos se dava sobretudo pelos “privilégios hereditários”. Com a proclamação da República, há uma mudança significativa na estrutura do Estado, criando o federalismo e os três poderes. A partir de então, o Estado passa a ser considerado laico. Nesse movimento há uma tentativa de transformar o caráter colonial e adaptar a estrutura administrativa às novas necessidades. A partir deste período, o país passa a participar ativamente da dinâmica das trocas capitalistas. Por isso, seria fundamental combater as heranças patrimonialistas e constituir um novo modelo de Estado, que demandaria a formação do funcionalismo público.  

A Constituição de 1934 organiza de forma substancial o funcionalismo, estabelecendo regras de acesso aos cargos públicos. Chama a atenção o caráter republicano desta, com ênfase na responsabilização tanto em casos de abuso de poder como de negligência. 

Na Constituição de 1988 é reafirmada a condição – já apresentada durante a ditadura militar – da exclusividade do ingresso no setor público pela via de concurso. Contudo, o texto também abre a exceção para contratação por tempo determinado.

Esta alteração na redação institui uma diferença entre cargo e emprego público. Nos anos seguintes, diversas aberturas são dadas para a inserção de contratos temporários e, também, para terceirizações, ampliando a diferença entre ambos.

Pensamos que o resgate sobre a constituição do funcionalismo público no Brasil é relevante por duas razões. Em primeiro lugar, ele representou um avanço em relação à herança patrimonialista do período colonial. Em segundo, e principalmente, que na mesma Constituição na qual é argumentada a exclusividade do concurso público, já se apresenta sua exceção. 

O exercício da função pública, apesar de arraigado em diversas contradições, em última instância representa a realização de uma atividade que deve atender a toda a população. A função pública tem sua justificativa de existência vinculada ao atendimento do bem comum e na possibilidade de  ser desempenhada independente de governos de ocasião. Por isso, precisa ser protegido com direitos sólidos. Os servidores públicos são uma das poucas categorias dentre os trabalhadores, dada certas proteções previstas no estatuto, que ainda possui alguma autonomia para executar seu trabalho.

Para que seja garantida a continuidade dos serviços à população, é fundamental que a estes trabalhadores seja assegurada a estabilidade. Estes direitos levam em consideração tanto a condição para que o serviço seja realizado com qualidade, quanto o fato de que os interesses particulares não possam se sobrepor aos da coletividade. Em uma sociedade na qual a regra da produção é o lucro, defender este princípio nos parece bastante relevante.

O ataque a estes trabalhadores vêm ocorrendo desde que o primeiro presidente da nova república democraticamente eleito, Fernando Collor de Mello, assumiu o cargo com a campanha “Caça aos Marajás”, em uma alusão aos servidores. Diversas transformações foram realizadas desde então. Contudo, em especial após o golpe de 2016, as classes dominantes vêm insistindo mais incisivamente nos ataques ao funcionalismo público. O argumento ideológico é de que estes gozariam de privilégios. No atual cenário, dada a condição degradante da classe trabalhadora, estes parecem gozar de certos direitos indisponíveis aos demais da classe. Justamente por constituírem-se como os bastiões dos direitos trabalhistas, os servidores públicos têm sido atacados. 

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Com essas questões em vista, gostaríamos de retomar o significado da PEC 32/2020. Se os servidores públicos prestam serviços à população, se seus direitos são uma importante condição para que eles sejam feitos com qualidade, a Reforma Administrativa gera impactos generalizados. Um trabalhador de um serviço público com estabilidade tem meios para que o serviço fornecido à população seja feito com isonomia. Ele pode orientar a um prestador de serviço a maneira mais correta de prosseguir em caso de insatisfação com o serviço. Já um servidor cujo emprego pode ser perdido em caso de “mal comportamento”, não pode agir sob o mesmo princípio do bem comum.

Convite 

Estes e outros pontos da Reforma Administrativa serão abordados no debate do dia 17/08, que ocorrerá às 18h, no canal da EFoP no Youtube. A Prof. Dra. Selma Venco tem realizado diversas pesquisas sobre a Nova Gestão Pública e seus impactos no serviço público, principalmente na área da educação. O espaço visa contribuir para as lutas que serão travadas contra a PEC 32/2020, sobretudo no dia 18/08, no dia da Greve Nacional contra a Reforma Administrativa. 

[1] VENCO, S.; SOUSA, F. O crepúsculo da função pública: distopia ou realidade? Revista Educación, Política y Sociedad, [S. l.], v. 6, n. 1, p. 149–176, 2021. DOI: 10.15366/reps2021.6.1.006. Disponível em: https://revistas.uam.es/reps/article/view/reps2021_6_1_006. 

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