Porto Alegre, RS 30/03/2020: Servidores do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU) e da Secretaria Municipal de Serviços Urbanos (SMSUrb) realizam serviços de higienização junto ao Mercado Público, no Largo Glênio Peres. Foto: Alex Rocha/PMPA

[Opinião] A reforma administrativa e ataque ao serviço público: combate de privilégios?

Imagem: Servidores públicos realizam higienização em Porto Alegre. Foto: Alex Rocha/PMPA

 

Maria Fernandez* – publicado originalmente em Universidade à Esquerda – 03/09/2020

Temos ouvido muito sobre a necessidade de uma reforma administrativa e o suposto “inchaço no serviço público” brasileiro. Nesse ponto o atual governo, a grande mídia e grandes empresários mantêm consenso e investem na criação de um discurso “antisservidor”, disseminando a ideia de que todo servidor público seja um privilegiado.

Nesse contexto de ataque ao serviço público, apresentam a Reforma Administrativa como “nova” grande salvadora da economia. Paulo Guedes e Bolsonaro enviaram a Proposta de Emenda a Constituição nesta quinta-feira (3) ao Congresso Nacional. Esse anúncio foi feito após reunião com ministros e lideres do governo na terça-feira (1º).

O envio da proposta de reforma estava aguardando melhor articulação entre executivo e legislativo. A proposta de reformar a estrutura administrativa está presente desde o período eleitoral e foi consolidada já em 2019. Contudo, somente agora o governo achou pertinente colocá-la em tramitação. O envio do projeto acontece logo após o anúncio da queda do PIB e o pronunciamento de continuidade do auxílio emergencial (agora com parcelas de R$ 300,00 reais).

Segundo anunciado pelo governo as mudanças serão para novos servidores e garantirá a “meritocracia”. Segundo o ministro Paulo Guedes: “A reforma administrativa é importante. Como o presidente deixou claro desde o início, não atinge os direitos dos servidores públicos atuais, mas redefine toda a trajetória do serviço público para o futuro. Serviço público de qualidade, com meritocracia, com concursos exigentes, promoção por mérito”.

A ideia de instituir um controle por “meritocracia” entre os servidores acaba dando elementos para impedir o posicionamento e pensamento crítico, e permitindo a submissão do servidor a interesses que muitas vezes são contrários ao público. Além de submeter o trabalho a formas de controle que mais burocratizam do que aumentam a qualidade do serviço prestado, há ainda, nessas propostas a criação de critérios de avaliação descolados da realidade do trabalho e que não consideram aspectos intangíveis.

Um exemplo que podemos entender facilmente é se avaliarmos na Unidade Básica de saúde um médico pela quantidade de atendimentos e registros que faz desses atendimentos, a tendência será que ele não gaste o tempo necessário em cada atendimento, para ter um número maior de atendimentos e pontuar mais, e passe mais tempo preenchendo formulários do que exercendo de fato sua função.

Esse é apenas um exemplo que pode ser agravado em um sistema de avaliação por mérito implantando sem considerar as condições próprias da sociedade em que vivemos. E deixar o servidor que não agrada sua chefia imediata (que muitas vezes, principalmente nos estados e municípios, está vinculada ao interesse do governante momentaneamente no poder) à mercê de chantagens.

Esta narrativa de combate de “privilégios”, já bem conhecida, objetiva reduzir ainda mais direitos trabalhistas de servidores públicos, ao mesmo tempo em que desmonta os serviços mais básicos de atendimento a população (como saúde, educação e assistência social, por exemplo). Reduzindo assim os direitos dos trabalhadores em geral.

O discurso faz parecer que a distância entre o trabalhador mais precário e o servidor público (aquele que nos atende nos serviços básicos) seria o grande problema. Sem questionar a distância gigante entre ambos e os grandes bilionários, muito menos discutir as possibilidades de reduzir ou eliminar esta última distância.

Ter garantia de um emprego estável não configura privilégio, e sim um direito que tem função de impedir que os servidores públicos sejam ameaçados com a perda do cargo ao se recusarem a se submeter a interesses privatistas de chefias e governantes. Assim a função da estabilidade esta relacionada ao atendimento do interesse público. Além disso, os alegados altos salários não são a maioria, na verdade metade dos servidores ganha por mês menos de R$2.700.

Há certamente situações de salário exorbitantes. No judiciário há salários que chegam a burlar o teto constitucional (correspondente ao salário dos ministros do STF que em 2019 chegou a 39,2 mil) com a adição de gratificações e auxílios. A disparidade entre os poderes é revelada quando vemos que no executivo apenas 25% dos servidores ganha mais do que R$ 5 mil mensais, no legislativo são 35% e já no judiciário mais de 85% ganha acima deste valor.

Entretanto mais de 57% dos servidores correspondem aos trabalhadores da esfera municipal (aqueles que atuam mais diretamente com a população) e cerca de 1/3 deles estão nas áreas de saúde e educação, com salários muito menores dos que os citados. A média de salário de varredores de rua, por exemplo, esta em cerca de R$ 1.600 e de professores dos anos iniciais cerca de R$3.300.

Certamente em sua falsa retórica de defesa dos mais pobres e combate de privilégios, o discurso liberal, mira em acelerar ainda mais o avanço do capital sobre o fundo público dos trabalhadores. Nesse sentido, o vínculo entre a defesa de direitos de servidores e a defesa de condições de existência de todos os trabalhadores precisa estar mais evidente entre nós.

A defesa de pautas dos servidores nem sempre é vista e relacionada no campo mais geral com os direitos dos trabalhadores mais precarizados. De fato nossos laços de classe são escamoteados e trabalhadores são colocados uns contra os outros, na disputa mais imediata do “pouca farinha meu pirão primeiro”. O egoísmo acaba superando a consciência de classe e dificultando uma luta conjunta.

Com esta defesa do serviço público é evidente que não podemos ignorar o fato de que existem no funcionalismo disparidades absurdas que precisam ser combatidas. Há altos salários, há disparidade entre os poderes (executivo legislativo e judiciário). Mas isso não é a regra e o servidor não é o inimigo. A reforma proposta, longe de corrigir privilégios, tenderá a aprofundar as desigualdades existentes em nossa sociedade, assim como as outras contrarreformas que são apresentadas como grande esperança, mas serviram apenas para tolher ainda mais nossos direitos e reduzir nossa condição de vida.

Para mais dados sobre serviço público acesse o Atlas do Estado Brasileiro clicando aqui.

*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal. .

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