Por Maria Alice de Carvalho da redação do UàE – 15/12/2017
Em reunião nesta quinta-feira (14 de dezembro), a Comissão Intergestora Tripartite (CIT)[1] aprovou mudanças na política de saúde mental, as quais, após 16 anos da Reforma Psiquiátrica e 30 anos da Luta Antimanicomial, fragilizam os princípios destas, atingindo o atendimento de pessoas com transtornos mentais e usuários de álcool e outras drogas.
Apesar de o Ministério da Saúde ter alegado que a resolução veta o aumento de leitos psiquiátricos em hospitais especializados e amplia a rede de atenção, o Movimento da Luta Antimanicomial repudiou a nova política de saúde mental ao denunciar que esta rompe com a lógica de desestruturação de manicômios.
A Reforma Psiquiátrica (Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001) tem, como um de seus princípios, a progressiva extinção dos leitos psiquiátricos nos hospitais; a nova política aprovada veta, em contrapartida, apenas a ampliação desses leitos, deixando em aberta a possibilidade de estes continuarem existindo, e não permitir assim uma desinstitucionalização dos tratamentos em saúde mental, como alegou o conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho.
A resolução aprovada aumenta o investimento em leitos de hospitais psiquiátricos e suspende o fechamento destes, ao mesmo tempo em que altera a forma de financiamento de leitos em hospitais gerais, deixando de ser mensal para ser disponibilizada verba a cada internação registrada. O coordenador de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas do Ministério da Saúde, Quirino Cordeiro Junior, justificou essa decisão pelo fato de que foi constatado através de um diagnóstico realizado pelo Ministério, que metade dos 1.164 leitos destinados à internação de pessoas com doenças mentais em hospitais gerais não têm registrado ocupação, enquanto 44 hospitais psiquiátricos registram atendimento acima da capacidade.
Outro ponto da Reforma Psiquiátrica é o intuito de deixar de tratar a rede social de suporte como promotora de uma normalização social, para passar a ser promotora de uma aceitação de diferenças, positivando a ideia que se tinha de comunidade da Psiquiatria Preventiva Comunitária, sendo a comunidade agora uma ferramenta de luta contra as diretrizes manicomiais e de segregação; as mudanças aprovadas agora nessa política de Saúde Mental ferem totalmente esse princípio, isolando os pacientes com transtorno mental ao dar a estes um tratamento totalmente excludente da comunidade. E, apesar de que segundo dados do Ministério da Saúde ainda atuam no Brasil 139 Hospitais Psiquiátricos, os quais atendem 25 mil pacientes, o número de leitos nessas instituições passou de 53 mil para 18 mil entre 2002 e 2015, ou seja, houve uma expressiva diminuição destes desde que a Reforma Psiquiátrica foi instaurada.
A resolução aprovada cria, ainda, uma nova modalidade de Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) para à assistência de urgência e emergência e oferta de linhas de cuidado em ambientes de cenas de uso de drogas, como as Cracolândias. A questão é que, dentro desses serviços, já existe um Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Outras Drogas (CAPSAD), responsável pelo atendimento de adultos com problemas decorrentes do uso de drogas; portanto, essa nova modalidade aparenta ser apenas mais um dispositivo localizado estrategicamente nas chamadas Cracolândias para dar continuidade às internações compulsórias de usuários de drogas de zonas periféricas.
Essa nova modalidade de CAPS, a qual será direcionada para pacientes com quadro de intoxicação aguda ou que buscam assistência relacionada ao auxílio para sair do vício, surge não coincidentemente acompanhada da proposta de o Ministério da Saúde passar a financiar Comunidades Terapêuticas e reconhecê-las como uma modalidade oficial de atendimento. As Comunidades Terapêuticas são, em sua maioria, ligadas a grupos religiosos e utilizam de tratamento moral e violação dos direitos humanos no tratamento dos sujeitos; estas são recorridas, principalmente, para tratar de questões de uso de álcool e outras drogas. De acordo com o CFP, essas comunidades não podem ser consideradas estabelecimentos de saúde[2], tendo em vista que inspeções realizadas nesses locais evidenciam a semelhança entre estas e os antigos manicômios. É uma forma de tratar de transtornos mentais e vícios em um modelo manicomial que desloca para o sujeito em tratamento a total responsabilidade por seu problema, sujeitando este a técnicas terapêuticas desumanas e que desconsideram o quadro social no qual ele está inserido.
Essas mudanças aprovadas que alteram a política de saúde mental instaurada pela Reforma Psiquiátrica aparecem, assim, não somente como um ataque a essa Reforma ou aos direitos humanos, mas sim como um processo de privatização do Serviço Público de Saúde e de avanço de um modo de vida liberal; a desumanização aparece aqui como uma consequência desses processos. Isso pode ficar mais claro quando se pensa nessas novas propostas de tratamento da loucura e do uso de drogas como somente mais uma forma de obtenção de lucro- o governo financiando instituições privadas que se responsabilizarão por esses casos.
Se trata aqui fundamentalmente de um processo de privatização, o qual – para que ocorra – necessita do descaso com a humanidade de sujeitos marginalizados ou desviantes da norma de produtividade da sociedade; o que, longe de ser espantoso, apenas mostra mais uma vez a característica violenta e desumana das relações no sistema capitalista.
[1]http://u.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/principal/secretarias/1063-sgep-raiz/dai-raiz/se-cit/l1-st-cit/17164-cit
[2]http://site.cfp.org.br/cfp-apoia-retirada-das-comunidades-terapeuticas-como-estabelecimentos-de-saude/