Montagem por UFSCàE

[Opinião] Assédio e militarização, o caso da escola Ildefonso, em Florianópolis

Morgana Martins e Maria Helena Vigo* – Redação do UFSC à Esquerda – 21/10/2022

No final de setembro, vieram a público diversas denúncias de assédio que ocorriam na Escola de Educação Básica (EEB) Ildefonso Linhares, localizada no bairro Carianos, por parte de um monitor da escola e militar do Exército, Alcione de Jesus, de 56 anos. A publicização das denúncias, que haviam iniciado em maio deste ano, gerou revolta na comunidade escolar e produziu duas manifestações contra os assédios e a militarização da escola.

Os casos de assédio

As cerca de 12 estudantes que sofreram assédio tinham entre 12 e 18 anos. Os relatos expõem que ele passava a mão nas coxas das estudantes, abraçava e falava coisas impróprias. Depois dos casos de assédio, o militar continuou podendo frequentar a escola e demorou até ser colocado em afastamento permanente. O Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Florianópolis (SINTE Regional Florianópolis) afirmou que as jovens que denunciaram o militar também alegam que a escola foi conivente, mas a Polícia Civil descartou a possibilidade de omissão da instituição.

O processo de militarização da escola

A escola Ildefonso passou por uma implementação do regime cívico-militar em maio deste ano, quando a instituição adotou o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), criado pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) em 2019, com objetivo de “ melhorar o processo de ensino-aprendizagem nas escolas públicas e se baseia no alto nível dos colégios militares do Exército, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros Militares”, segundo o Ministério da Educação (MEC).

Segundo relatos de estudantes em redes sociais, a adesão ao projeto se deu por meio de uma reunião online, sem amplo debate na comunidade escolar e sem a participação dos estudantes. Há também relatos de que professores da escola que se opõem ao modelo cívico-militar são silenciados e constrangidos.

Segundo o SINTE Regional Florianópolis, “como trabalhadores da educação, temos visto nos últimos anos a crescente ideia de que a militarização de nossas escolas seja um projeto que visa a qualidade do ambiente escolar. O caso da Ildefonso demonstra quão maléfico é esse projeto. Estão censurando nossos alunos e professores, aparelhando instituições e sendo omissos diante do assédio sexual de crianças e jovens”.

Na Grande Florianópolis, há ainda outras duas escolas da rede estadual militarizadas: a EEB Ângelo Cascaes Tancredo, na Palhoça, e a EEB Emérita Duarte Silva e Souza, em Biguaçu. Em São José, o Programa Escolas Cívico Militares foi derrotado por pais, alunos e professores na EEB Profª Maria José Barbosa Vieira (CEMAJOBA) em 2019, o que mostra uma possibilidade de rejeitar esse modelo escolar a partir de mobilizações feitas nas escolas.

O que os militares fazem nas escolas?

Os monitores militares são inseridos dentro das escolas com o papel de organizar e regular o disciplinamento dos estudantes, assim como, estão responsáveis por ministrarem as disciplinas do “projeto valores”, a variante militar da disciplina de “projeto de vida” que foi inserida a partir do novo ensino médio no currículo obrigatório das escolas.

Nas disciplinas do projeto valores, os militares devem ensinar civismo, dedicação, excelência, respeito e honestidade. A atuação destes tanto nas disciplinas, quanto no restante do cotidiano da escola, busca disseminar uma noção de conduta, que por vezes se expressa na forma como estudantes devem vestir-se, apresentar-se dentro de critérios de asseio e higiene, se comportar nas relações com seus colegas e professores, mas também entender a sua relação com o seu país e a sociedade, dentro de valores que reproduzem uma formação meritocrática e para a subordinação. 

A formação humana voltada para a subordinação é o que está de fundo das lógicas pedagógicas que envolvem o conjunto das reformas da educação que foram construídas na última década e estão em implementação desde 2017, com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Reforma do Ensino Médio. 

Contudo, com o projeto de ECIM do governo Bolsonaro, tal formação ganha aspectos mais explicitamente coercitivos e são oferecidos às escolas como uma saída para a drástica precarização de recursos vivida pela educação e aprofundada por este mesmo governo, pois oferecem aumento de investimento financeiro para as escolas que aderirem ao mesmo.

A violência sexual frente a uma educação coercitiva

As denúncias de assédios dentro das escolas de educação básica tem ganhado grande dimensão ao longo deste ano. Conforme noticiado pelo jornal NSC, atualmente há 43 professores investigados por assédio nas escolas de toda a rede estadual catarinense.

Se por um lado estudantes e colegas de trabalho têm tido a coragem de trazer esses casos à tona, mesmo que por vezes sejam tratadas/os de forma negligente pelas instituições responsáveis por dar o devido tratamento da situação, por outro, há um processo de coerção e censura crescente à liberdade de manifestação e expressão no ambiente escolar, mesmo diante de casos gravíssimos como estes.

Os processos de militarização da escola são apenas uma das expressões de coerção dentro da educação, há ainda as tentativas de conter qualquer processo de formação que tenha uma relação com um aspecto crítico e politizado. 

Um exemplo explícito da empreitada para conter qualquer aspecto de uma educação crítica foi a tentativa de criar um projeto de “escola sem partido” a partir do ano de 2016. Isto se desdobrou e perdura em uma série de episódios de perseguição e constrangimento de estudantes, professores e escolas ao abordarem temáticas como raça, diversidade de gênero e sexualidade, por exemplo.

Estes sujeitos que atuam no campo do Bolsonarismo e outras tantas manifestações severamente reacionárias e autoritárias, intimidam e tentam conter uma educação que informa sobre as manifestações saudáveis da sexualidade e identidade juvenil e ajudam a indentificar aquilo que foge a este escopo e se enquadra nos diversos graus de violência sexual.  Contudo, quando vêm à tona denúncias de assédio e violência sexual contra menores e mulheres em geral, estes mesmos setores geralmente são extremamente omissos e coniventes, quando não atuam ativamente para contê-las.

Na última quarta-feira (20), estava para entrar em votação como pauta prioritária na Câmara dos Deputados um Projeto de Lei que visa tornar a pedofilia um crime hediondo. A base do governo federal atuou para impedir que o projeto entrasse em pauta. Este episódio se seguiu à repercussão de uma fala do Presidente Jair Bolsonaro falando que havia “pintado um clima” entre ele e adolescentes venezuelanas de 14 e 15 anos do Distrito Federal.

Os projetos de educação, a realidade brasileira e as violências nas escolas 

O projeto autoritário de educação, assim como o neoliberal – que não estão tão distantes assim, como pode parecer em alguns momentos; ao formarem para a subordinação e atuarem de forma coercitiva contra a juventude, muitas vezes se apresentam como uma forma de “diminuir riscos” e conter as manifestações de violência nas escolas. 

Contudo, como nos mostra este caso, em que um militar assediou, ou seja, cometeu violências, contra diversas estudantes dentro de uma escola, e outros inúmeros fatos da realidade, estes projetos não são capazes de conter, nem diminuir as manifestações de violência na escola, pelo contrário. 

Nas últimas semanas foram noticiados dois assassinatos a mão armada dentro de escolas: um jovem invadiu uma escola cívico-militar na Bahia e assassinou uma estudante cadeirante; no Ceará um estudante levou uma arma de CAC (Colecionador, Atirador desportivo e caçador) para a escola e realizou um tiroteio dentro da mesma, um estudante veio à óbito. 

O aumento do acesso a armas por meio das licenças CACs também é resultado de outra iniciativa do governo Bolsonaro: a flexibilização para o acesso a estas licenças.

Ainda, com uma frequência quase mensal, por vezes até semanal, é possível acompanhar nos noticiários ameaças de massacres nas escolas brasileiras, alarmando familiares, estudantes e professores que têm acompanhado tanto os casos recentes, quanto ainda estão marcados por episódios como o de Saudades, no interior catarinense e o massacre de Suzano.

Leia também: Os massacres brasileiros

Algumas considerações que nos ajudam a tentar iniciar uma compreensão destes episódios é que em primeiro lugar, a própria existência de uma atuação militar nas escolas é uma violência em si contra o processo educacional. Em um país em que minimamente se tivesse uma efetiva ação de memória e reparação contra o papel que cumpriram os militares durante a ditadura, pois realizaram todo tipo de tortura e barbaridade contra aqueles que se opunham ao regime, inclusive de caráter sexual, não seria sequer cogitidado um projeto de tamanho descalabro. 

É preciso levar em consideração também como todo esse entulho autoritário se coaduna com o conjunto de reformas educacionais que vêm buscando destruir o caráter crítico dentro da formação escolar. Pois além das ECIM encontrarem um lugar formativo articulado ao novo ensino médio, muitas vezes o que se apresenta como alternativa a esse modelo, vêm de representantes do Todos pela Educação, entre tantas outras articulações e representações empresariais que construíram ativamente a BNCC e o novo ensino médio.
Quando olhamos de perto, o que aparece como alternativa também oferece propostas formativas para a meritocracia e subordinação, mas que possuem uma propaganda mais clean e amigável, até mesmo abarcando o ensino de gênero, sexualidade e raça, falando em valorização das emoções e sentimentos, formação tecnológica e crítica, para no fim apenas esterilizar a formação humana como um mero processo de formação de indivíduos absolutamente fragmentados e dóceis. Estas mesmas “representações” do projeto de educação da burguesia nunca fizeram nada para efetivamente se opor ao “escola sem partido” ou às ECIM.

Não se enganem, tanto a formação abertamente coercitiva, quanto a que vai por caminhos mais persuasivos, produzem horrores na desumanização dos sujeitos que estão ao nosso lado. 

Em segundo lugar, é preciso olhar o grau de violência que a crise e a miséria capitalista tem proporcionado a esse país. Isto pressiona inevitavelmente parcelas da classe trabalhadora a cometer as mais repletas atrocidades contra si mesma e seus próximos. E isso não há processo de contenção e coerção que seja capaz de minimizar ou esconder por muito tempo.

*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.

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