Helena Lima* – Redação UàE – 26/03/2020
A pandemia tem levado todos à discussão da situação de emergência que estamos vivendo. Os especialistas hoje estão debruçados na construção da contenção de uma barragem que já explodiu. No entanto, como em todos os casos, a urgência nos afasta da reflexão sobre as condições estruturantes de uma pandemia como a do coronavírus. Diversas declarações de órgãos de saúde e infectologistas confirmam que já se cogitava que algo assim poderia eclodir e que não estaríamos preparados para enfrentá-lo.
O que o mundo vive hoje não é uma total novidade para os pesquisadores. É sabido que pragas como esta normalmente começam como um vírus em animais e são transmitidas para os humanos, percorrendo algum caminho das áreas rurais remotas até infectar pessoas no perímetro urbano. Ao passo que aumentamos o desmatamento, comerciamos espécies exóticas e construímos estradas onde antes existiam florestas, vivendo em uma sociedade em que viagens e comércio são totalmente globalizados, estamos fatalmente suscetíveis a novos vírus. Novas mutações da influenza surgiram da pecuária, e Ebola, SARS, MERS, e COVID-19 também foram associadas à vida selvagem.
Dessa maneira, não são apenas os mercados exóticos o problema, como querem defender os preconceituosos. De acordo com o biólogo Rob Wallace, as crescentes monoculturas de animais, cada vez mais superlotadas, rebaixam qualquer barreira imunológica que poderia existir. Independente da causa específica do coronavírus, existe uma condição estrutural: a busca por altos lucros na agricultura industrial e a mercantilização dos recursos naturais.
Assim, o elemento mais fundamental para entender o surgimento de um desastre como o do coronavírus é o agronegócio. Mas ainda existem outros pontos importantes, muito bem expostos no texto do escritor norte-americano Mike Davis publicado pela revista Jacobin, para entendermos: por que não estávamos preparados, então, para a defesa contra o COVID-19?
Primeiramente, existe uma abdicação da indústria farmacêutica em pesquisar novos antibióticos e antivirais. “De 18 grandes companhias farmacêuticas, 15 abandonaram este campo completamente. Remédios para o coração, tranquilizantes viciantes e tratamentos para impotência masculina são líderes do lucro, não as defesas contra infecções hospitalares, doenças emergentes e assassinos tropicais tradicionais. Uma vacina universal para gripe – isto é, uma vacina que ataca as partes imutáveis das proteínas superficiais do vírus – é uma possibilidade há décadas, mas nunca foi considerada lucrativa o suficiente para ser uma prioridade”, afirma Mike Davis.
Além disso, a questão da propriedade intelectual sobre os processos e as informações das farmacêuticas incide diretamente na problemática do acesso universal à saúde. Uma face extrema dessa problemática é a prática de preços exorbitantes por certos medicamentos e tratamentos, que efetivamente restringem o acesso a uma pequena parcela da sociedade.
Não é surpresa, aliás, que a indústria farmacêutica se apoie inclusive na formulação de novas enfermidades para abrir mercados para seus produtos. Contra o argumento de que os altos custos de pesquisa e desenvolvimento só poderiam ser cobertos pela prática de preços que tornariam os medicamentos inacessíveis, aí reside a própria solução: a pesquisa e o desenvolvimento de medicamentos não podem estar inseridos numa lógica de produção que vise lucro; seus custos e benefícios devem ser plenamente socializados.
Embora a prática de preços impeditivos à vacinas ou tratamentos ainda não seja o caso com o coronavírus, a existência das barreiras na forma de patentes e de segredos industriais ou de pesquisas em andamento impede que o conhecimento seja compartilhado pelas diversas equipes científicas para um avanço rápido no combate à pandemia.
Outro ponto importante para entender nosso despreparo é referente ao sistema de saúde. Nos Estados Unidos, houve uma diminuição de 39% de leitos de UTI entre 1981 e 1999, e a diminuição que continua até hoje. A razão é a de que o máximo de leitos estivessem ocupados para maximizar o lucro, o que leva, no entanto, a hospitais não estarem preparados durante epidemias ou emergências médicas. Na Europa, os sistemas de saúde também foram desestruturados e privatizados nos últimos 30 anos.
O Brasil, de acordo com o Conselho Federal de Medicina (CFM), perdeu entre 1990 e 2011 203.066 leitos hospitalares do SUS, sendo que a desativação progressiva ocorreu, principalmente, no setor privado conveniado ao SUS. Desde 2011, a queda de leitos continuou, perdendo mais 23 mil leitos.
A situação é ainda mais grave nos países periféricos. Uma das dificuldades para os especialistas caracterizarem o coronavírus é a de que a trajetória da pandemia deve ter um caminho muito mais violento em países da África e do Sul da Ásia, onde muitos casos sequer serão registrados. Não saberemos como o vírus vai se disseminar nestes lugares, porque não terão acesso aos testes. Países como Mali dispõe de apenas um respirador, sete leitos de UTI, 600 litros de álcool gel e 2 mil kits de teste. E, ainda, não existe opção de quarentena quando este país depende basicamente do setor informal.
Dessa maneira, solidariedade internacional é indispensável neste momento. Deve haver um esforço internacional de apoio aos milhões de desamparados nos países periféricos, equipando seus sistemas de saúde, enviando kits de teste e aparelhos de respiração. Mas a solidariedade só existe se entendermos que não existem patógenos “livres do capital” hoje, como afirmou Rob Wallace. A luta deve ser pela expropriação das indústrias farmacêuticas, pelo fim das condutas assassinas do agronegócio e pelo fim de qualquer propriedade intelectual.
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