Imagem: Montagem UàE
Flora Gomes *– Redação UFSCàE – 24/06/2021
Na última sessão do Conselho Universitário (CUn) da UFSC (01/06) foi adiada, por pressão de parte dos conselheiros, a votação de duas Resoluções Normativas (RNs) aprovadas na Câmara da Pós-Graduação (CPG). A expectativa, embora ainda não haja convocação, é de que a pauta retorne na próxima terça (28/06). Se aprovadas, a pós-graduação lato sensu poderá cobrar mensalidades, expandir os mecanismos de reunião online permanentemente nos cursos stricto sensu , dentre outras questões. Apesar de ambas alterarem profundamente o sentido da pós-graduação na UFSC, pouco tem sido debatido sobre isso na universidade.
O tema foi apresentado aos presentes sob forma de um parecer elaborado pelo relator do CUn sobre a proposta de minuta aprovada na CPG, Prof. Conselheiro Fabrício Neves, acerca da RN 095, elaborado pela CPG, a ser votado por em bloco, sem apresentar as alterações por completo. Assim, a metodologia adotada na reunião impedia o debate dos pontos alterados na resolução e pressupunha a aprovação sem discussão. Parte dos conselheiros presentes defendeu que o Conselho Universitário, órgão máximo de deliberação da universidade, não deveria discutir o tema, apenas aprová-lo. Além disso, chama a atenção o fato de que ambas as resoluções discutidas em anos anteriores na CPG, e são apresentadas para votação no CUn neste momento em que as reuniões são remotas, dificultando a mobilização da comunidade para barrar as normativas. Essas posições demonstram que há setores da UFSC que buscam alterar substantivamente a pós-graduação de forma rápida, impedindo deliberadamente o debate crítico sobre o tema.
Leia também: Alterações nas resoluções normativas no CUn para a pós-graduação
RESOLUÇÃO NORMATIVA 095 – Dispõe sobre a pós-graduação stricto sensu
Número do processo para consulta no SPA/UFSC: Processo 23080.030524/2019-04
Essa resolução normativa dispõe sobre o Regulamento Geral da Pós-Graduação Stricto Sensu na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Dentre os diversos pontos que essa longa resolução altera, destacamos alguns para salientar o impacto profundo em toda a pós-graduação.
- Redução de tempo e qualidade na formação de pesquisadores
O artigo 2 ̊ (§ 1º) propõe alteração na normativa no intuito de facilitar o ingresso no doutorado sem ter inscrição no mestrado. Como resultado, há uma tendência de dissociar o mestrado do doutorado. Além disso, o artigo 32 ̊ insere critérios pouco objetivos para facilitar o “upgrade” do mestrado para o doutorado. Essas duas mudanças, apesar de parecerem sutis, carregam um princípio formativo bastante distante do caráter universitário e crítico, já que pressupõe que os pesquisadores devem passar pelos anos de pesquisa o mais rápido possível.
A atividade de produzir conhecimentos verdadeiramente novos e densos é extremamente complexa, e não pode, de maneira alguma, se submeter a outro tempo que não o da própria assimilação e produção de saber.
A pós-graduação já está repleta de mecanismos que são contrários à produção científica, como as pressões por desempenho, os métodos de avaliação CAPES, entre outros. Além disso, seu tempo de duração também já foi diminuído em reformas anteriores.
Podemos pensar na questão da facilitação da passagem do mestrado para o doutorado, ou ainda, o ingresso direto no doutorado. Se olharmos para países em que isso ocorre, como nos Estados Unidos e Europa – a partir do Tratado de Bolonha -, percebemos que a formação se divide: os que querem ser professores fazem mestrado e os que querem seguir como pesquisadores vão direto ao doutorado. Isso significa, no contexto em que estamos inseridos, a descaracterização da pesquisa, já que o longo percurso formativo atravessado por pesquisadores é fundamental para que, ao final, possa-se obter um resultado satisfatório para a pesquisa – e não para o mercado. Além disso, abre-se a possibilidade de alteração da formação de professores universitários.
Chama a atenção, inclusive, que ao longo do documento a proposta de resolução suprime o termo “acadêmico” para se referir às atividades da pós-graduação, vide os artigos 13˚ e 17˚ da normativa.
- Aulas fora da sede da UFSC: parceria com empresas?
O artigo 6˚ prevê a possibilidade de ofertas turmas de pós-graduação fora da sede dos programas. Na conjuntura que estamos atravessando, este ponto chama a atenção por duas razões.
Em primeiro lugar, os cortes sistemáticos dos últimos anos nos orçamentos das universidades federais têm levado ao sucateamento da estrutura desta. A queda drástica do orçamento nos últimos dois anos na UFSC, tem impedido os investimentos nas estruturas que sustentam a produção das pesquisas. Laboratórios, prédios e bibliotecas em péssimas condições não satisfazem a produção científica. Somado a ausência de verbas, a adoção do Ensino Remoto na UFSC deixou a universidade largada às traças. Diversos espaços, pela ausência dos reparos usuais que costumavam ocorrer no cotidiano da universidade, deixaram de acontecer.
Leia também: Sem orçamento, UFSC caminha para o sucateamento
Em segundo, essa resolução abre precedentes para que, frente a esse sucateamento ativamente produzido pela política adotada na gestão orçamentária, outros espaços alheios à UFSC possam servir como sala de aula. Ao invés de vivenciar a experiência universitária em sua totalidade, o(a) pós-graduando(a) poderá ter como sala de aula uma empresa com todo o seu papel pedagógico de adequação às necessidades do mercado.
- Permanência do Ensino Remoto após o fim da pandemia
Em dois artigos desta resolução é apresentado, de maneira explícita, a permanência de mecanismos que passaram a ser amplamente explorados pela universidade após a adoção do Ensino Remoto. Cabe destacar que estes artigos não são apresentados em uma conjuntura qualquer, já que ainda ontem foi apresentado o “Reuni Digital”, uma proposta do Governo Federal para expandir os cursos EaD em âmbito nacional.
No artigo 12˚ o texto amplia a participação da categoria discente nas reuniões de forma remota. Ainda que na versão anterior da resolução houvesse precedente para a participação excepcional de professores neste formato, a possibilidade de que discentes também possam estar em reuniões por meio de mecanismos de vídeo chamada é preocupante. A pandemia ressignificou o espaço universitário para muitas gerações de estudantes. Na pós-graduação, a grande maioria dos estudantes que hoje cursam mestrado já iniciaram seus cursos adotando a modalidade remota. Na prática, isso exerce uma pressão ideológica que empurra goela à baixo dos estudantes a normalização da universidade nesse caráter.
Assim, a ampliação das reuniões online para participação discente pressiona para que, após o fim da pandemia, este modelo seja a regra para as reuniões. Para além da perda do que significa o espaço universitário, as reuniões online dificultam muito as mobilizações. Por isso, é pertinente ao capital que nesta conjuntura de constantes ataques às universidades públicas, haja esta pressão.
Além disso, o artigo 34˚ (§ 3 e 4) propõe a possibilidade da docência remota mesmo após o fim da pandemia. A permanência das tecnologias a distância na pós resulta em um prejuízo imediato nas pesquisas produzidas, já que há uma perda do que é a experiência da produção científica nos espaços da universidade, como bibliotecas, auditórios e até mesmo corredores. Ademais, a própria apreensão do conhecimento fica extremamente limitada, já que os conteúdos complexos podem ser mais custosos ou mesmo impossíveis de serem assimilados em um contexto de ensino a distância.
ou ainda são impedidos de serem assimilados sem discussões feitas entre colegas e professores, o que não é possível por meio do ensino a distância.
Leia também: ER na pós-graduação: algumas consequências para a pesquisa no Brasil
- Descaracterização do trabalho docente
O artigo 25˚ prevê a possibilidade de que docentes não integrantes do quadro pessoal efetivo da universidade possam exercer atividades de pesquisa. Este artigo abre brechas para que, por exemplo, sujeitos ligados aos interesses diretos do capital, como empresários, participem diretamente da formação dos pesquisadores da pós-graduação.
A carreira docente, em seu seio, carrega o compromisso com a política da universidade e a formação contínua dos estudantes. Tal como nos ensina o movimento da Reforma de Córdoba, os professores carregam a tarefa de transmitir o desejo de saber e de transformação da sociedade. Apesar de estarem sendo engolidos por demandas produtivistas e burocráticas, é preciso lutar para que não se perca o papel dos docentes nas formações de pesquisadores de alto nível. Eles precisam ser uma referência intelectual dos estudantes, por meio de aulas imprescindíveis à formação e orientação dedicada ao pesquisador.
Por essa razão, a possibilidade de que professores externos a esse conjunto de políticas possa atuar ideologicamente na formação de estudantes necessita ser avaliada com bastante cautela.
- Perda do caráter formativo intelectual na pós-graduação
Dois artigos apontam para este sentido. O primeiro, é 29˚, que prevê a regulamentação do doutorado profissional. O segundo, é o artigo 59˚ (II), que regulamenta a entrega de outro tipo de trabalho de conclusão que não seja a tese, como por exemplo, a apresentação de um compilado de artigos. Estes dois pontos podem ser analisados à luz do que apresentamos no primeiro item deste texto, acerca do papel da redução no tempo de formação.
A aquisição do título de doutor tem, dentro do processo de formação universitária, diversas complexidades. No mestrado, o trabalho de obtenção do título carrega um caráter de argumentação sobre um tema, etapa que precede o doutorado justamente porque é um momento de início de elaboração de pesquisa. Já no doutorado, é necessário que o(a) pesquisador(a) produza algo mais complexo e próprio, a ponto de significar uma tese. Esse processo é longo, árduo e pressupõe uma maturidade intelectual que não é rapidamente obtida, já que corresponde a elaboração de um novo conhecimento que faça avançar a produção de ciência, filosofia e artes.
A regulamentação do doutorado profissional descaracteriza totalmente o que significa esse árduo trabalho intelectual na pós-graduação, aproximando o que deveria ser do campo da produção do conhecimento das demandas de profissionalização. Esse mecanismo traduz uma maior intimidade entre as exigências imediatas do mercado com o que deve ser elaborado no doutorado.
Soma-se a isso esse segundo artigo acerca da dispensabilidade da tese, como se o produto final de todo o trajeto da pesquisa pudesse ser traduzido em pequenos conteúdos esparsamente publicados, com pouca densidade e relevância para os dilemas da sociedade.
Tem sido cada vez mais comum, sobretudo em cursos de ciências humanas, a substituição dos grandes teóricos de referência por uma série de artigos parciais que dissertam sobre o tema. Essa tendência tem como fundo político a adequação da formação aos projetos profissionais, de adequação ao mercado, obstruindo os anseios intelectuais. Na prática, esses planos de ensino refletem a baixa expectativa do corpo docente na capacidade intelectual dos alunos, ao tentarem simplificar conteúdos que são extremamente complexos. É extremamente grave que essa lógica esteja presente também na pós-graduação, momento no qual o(a) estudante poderia finalmente debruçar-se com o tempo e recursos necessários para apreender os conteúdos complexos.
- Exclusão dos Centros de Ensino das deliberações acerca da pós-graduação
Ao longo do texto, chama a atenção na normativa que os Centros de Ensino estão excluídos da mediação dos programas com as políticas da pós-graduação elaboradas pela CPG. Ainda que seja necessário defender a autonomia dos departamentos nas formulações dos seus cursos, a forma como se apresenta essa resolução para o CUn indica uma tendência de buscar diminuir ao máximo os espaços de debate sobre as questões da pós-graduação.
Conforme apontamos no início do texto, a pauta se apresentou no CUn sem que houvesse nenhum debate público sobre o tema. O que houve foi apenas uma consulta pública realizada com os coordenadores da pós em 2018, debate que não ressoou na base. Os programas de pós-graduação de maneira geral, docentes e alunos, não têm conhecimento destas graves alterações normativas. Além disso, há uma forte pressão para que as questões sensíveis da universidade sejam resolvidas a toque de caixa no interior de câmaras e reuniões fechadas.
Por essa razão, a exclusão dos Centros de Ensino do debate da pós-graduação parece tentar diminuir a participação da comunidade universitária nestas discussões.
RESOLUÇÃO NORMATIVA 015 – Dispõe sobre a pós-graduação lato sensu
Número do processo para consulta no SPA/UFSC: 23080.018994/2019-91
Esta normativa, ainda que verse apenas sobre os cursos lato sensu, dizem respeito a toda universidade, pois altera profundamente o que se entende por universidade pública e pós-graduação.
É necessário apontar que a existência, por si só, da pós-graduação profissionalizante no interior das universidades públicas já significa um dado bastante problemático. As universidades públicas, sobretudo a pós-graduação, são um espaço de produção da crítica. A existência de uma pós que literalmente forma estudantes para adequação profissional é extremamente limitante para a formação. Ao invés de uma formação para criticar as estruturas desiguais da sociedade, de avançar na produção filosófica, de formular uma nova descoberta científica, esse modelo adequa estudantes às necessidades imediatas e rebaixadas do mercado de trabalho, o qual tem por objetivo minar nossa capacidade criativa.
A tendência é que esse tipo de pós-graduação seja a porta de entrada para políticas extremamente deletérias para toda a universidade.
Proposta de ensino híbrido
No artigo 2˚ (§ 4º) é acrescentado à pós-graduação EaD, o modelo semipresencial de ensino. Esta proposta em que há um modelo híbrido, no qual parte do ensino é feito presencialmente e outra, a distância, também tem se apresentado na graduação da UFSC.
Leia também: Retorno híbrido na UFSC e porque esse modelo não nos serve
Este modelo de ensino tem se apresentado como uma forma de consensuar a expansão do capital por meio de tecnologias da educação e a complexidade da formação universitária. Como a experiência com o Ensino Remoto tem sido desastrosa para diversos estudantes, a hibridização do ensino é apresentada como saída. Este modelo parte da ideia de que é necessário “modernizar” a formação com a adoção de mecanismos do EaD, como vídeo aulas e podcasts, como se isso, de fato, fosse capaz de substituir as aulas e o papel do professor. Restaria para realizar presencialmente, apenas a parte presencial da pós-graduação profissional.
Esta ideia de que há uma parte teórica totalmente separada da prática e que a sala de aula é um tempo mal gasto e extremamente danosa para o fim último das universidades. Além disso, a expansão da pós-graduação nesse modelo é conveniente ao capital, já que substitui o complexo trabalho docente pela inserção de tecnologias.
- Cobrança de mensalidades
Esse fantasma que assombra as universidades públicas a cada novo corte orçamentário é apresentado nesta resolução. O artigo 11˚ institui a cobrança de mensalidades nestes cursos de pós-graduação.
A proposta por si só é um absurdo, já que deteriora totalmente o sentido de universidade pública tal como conhecemos hoje. Na prática, se aprovada, ela abre precedentes para que isso seja aos poucos assimilado como natural pelo corpo universitário e expandido para as demais pós-graduações.
Atualmente a pós-graduação enfrenta um problema seríssimo de financiamento, já que os cortes repassados às agências de fomento tem refletido cada vez mais na realidade de programas e estudantes. A falta de orçamento vem sendo usada como argumento para a universidade aceitar goela abaixo modelos como estes e de assimilação do EaD como forma de redução dos custos. Alega-se que estas propostas resolveriam os problemas imediatos no orçamento, encobrindo o fato de que isso significa a perda sentido público da universidade. A cobrança de mensalidades nesse cenário reflete o projeto de destruição da pós-graduação tal como conhecemos hoje no Brasil.
- Substituição do trabalho docente
O artigo 19 ̊ abre espaço para que atividades que são exclusivas dos professores, pela própria complexidade delas, possam ser realizadas por “tutores”. Estes, poderão ser alunos da pós-graduação stricto sensu ou formados no lato sensu, que poderão realizar, nos cursos à distância, atividades de ensino.
De maneira breve, dado os limites do nosso texto, buscamos apresentar alguns pontos para deixar evidente que não se tratam de meras alterações normativas, mas sim, da transformação rápida e silenciosa da pós-graduação na UFSC. É urgente que essa discussão seja feita pelos programas, departamentos de ensino e centros. Todas as categorias devem se envolver para barrar as normativas e lutar para que a pós-graduação seja um espaço crítico, de formação complexa e atenta aos dilemas de nossa classe.
*Os texto de opinião são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal