João Lemos* – Redação UFSC à Esquerda – 24/09/2022
Quinta-feira, dia 22/09, a UFSC presenciou uma manifestação que foi como uma chama explodindo em uma sala escura. Os estudantes e professores do curso de Letras Libras foram até a reitoria entregar uma carta ao reitor Irineu Manoel de Souza, exigindo as condições mínimas para que a comunidade surda da nossa universidade estude com a dignidade que merece.
O quarto escuro: um campus que, já no segundo semestre desde a volta das atividades presenciais, ainda se depara com o imobilismo frente ao desmonte e os ataques à Universidade pública. A chama: o coro, o batuque e a energia do movimento estudantil que não teme incomodar ou confrontar quando se trata da luta pela educação.
A multidão armada de cartazes, tambores, cultura e confiança, marchou do CCE até o hall do prédio da reitoria e então ficaram na escada que leva à sala do gabinete do reitor. Irineu Manoel de Souza, com uma equipe de intérpretes, demorou para descer, pois estava em uma reunião. Desculpou-se com essa justificativa e pediu para que, da próxima vez, os estudantes tentassem marcar horário. Parece que ele ainda não entendeu como as verdadeiras necessidades do povo são percebidas.
Ao UFSCàE, nos conta Tay Muller, estudante do curso de Letras Libras, que os objetivos da manifestação e da entrega da carta eram reivindicar pela visibilização da comunidade surda na universidade, recobrar suas condições dignas de estudo e evidenciar as perdas pedagógicas causadas pelo descaso.
De acordo com a militante, o curso de Letras Libras da UFSC foi o primeiro curso de graduação de línguas de sinais da América Latina. Referência internacional de educação, divulgação e produção de conhecimento da cultura surda para sociedade, o curso vem sofrendo ingloriamente pela invisibilidade sistemática da comunidade surda nos últimos dez anos.
Na manifestação bilíngue, a multidão indignada levantava as faltas e as contradições que enfrentam no dia a dia da Universidade. A comunidade surda dificilmente consegue se comunicar com os outros cursos ou centros de ensino: Os estudantes não podem fazer disciplinas optativas pois não há intérpretes; Não há local adequado para a produção de seus materiais educativos – o bloco C do CCE, que seria destinado para o curso de Letras Libras, sequer existe, o que é um descaso tanto com os estudantes e professores da comunidade quanto, ironicamente, com o alfabeto (no CCE há só os blocos A, B e D).
Sobre os intérpretes, os manifestantes apontaram ainda que, além de insuficientes em número, estes funcionários, contratados por empresas terceirizadas, não são especializados o bastante para a complexidade dos conteúdos acadêmicos. Um manifestante questionou o reitor, “se nós não temos intérpretes, porque o senhor reitor tem três à sua disposição? Você consegue nos entender por causa deles, mas nós não conseguimos entender as outras pessoas pois nós não temos intérpretes, como ficamos assim?”
Mais azedas desigualdades foram explanadas. A comunidade surda dentro da UFSC fez contribuições importantíssimas para a educação inclusiva em nível nacional, como por exemplo a formulação do ENEM em libras. Mesmo assim, hoje não há políticas de permanência e inclusão suficientes para essa comunidade. Como apontam na carta, os estudantes surdos sequer têm acesso pleno ao HU, por este não ter atendimento em libras – ou seja, a comunidade surda clama por equidade.
Confira um trecho reproduzido diretamente da carta dirigida ao reitor (que se encontra na íntegra no fim da notícia) que trata das reivindicações diretas:
– Informação sobre o destino das verbas aprovadas para o curso de Letras Libras e a DEVOLUÇÃO dessa verba para seu devido uso.
– Soluções efetivas para garantir intérpretes em número suficiente para o atendimento de toda a universidade, garantindo acesso bilíngue e equânime, não apenas soluções temporárias e sim de maneira efetiva.
– Uma proposta de compensação dos conteúdos que foram perdidos e disciplinas que não puderam ser cursadas até a contratação dos intérpretes.
Todas essas dignas reclamações refletem o fato de que a universidade e as políticas nacionais de educação vem tratando como prioridade a produção de um conhecimento que não se volta para e não é demanda verdadeira da sociedade que nos cerca. Muitas mentes ávidas por conhecimento e cheias de energia para transformações sociais vieram para o curso de Letras Libras aqui na UFSC e se depararam com a amarga injustiça de incessantes obstáculos, que resultaram em perdas pedagógicas lamentáveis.
Essas situações devem ser evidenciadas e trazidas à tona, sem submissões a burocracias de agenda e de representação. De fato, tínhamos que tratar com verdadeiro luto essa perda pedagógica tão bem expressa pela comunidade surda: aqueles estudantes que aqui entram com a nobre causa de construir uma sociedade mais justa e digna são escanteados devido a política de financiamento de nossa universidade. Política essa que valoriza, escancarada e vulgarmente, os setores da UFSC voltados às demandas mercadológicas e lucrativas do capital.
A reitoria, em resposta, pronunciou que está sendo efetuada a contratação de mais vinte intérpretes terceirizados (dessa vez de uma empresa especializada), e que será concluída no prazo de um mês. Justificou-se com a falta de verba e com as dificuldades de negociação com o atual governo. Entretanto, os estudantes de libras não se deram plenamente satisfeitos e declararam que permanecerão atentos para que suas reivindicações sejam atendidas. Inclusive, houve falas anunciando greve estudantil.
Muitos na manifestação declararam estar emocionados diante da força que dali emanava. Mas não tinha só força, tinha também beleza. Eram duas línguas construindo um mesmo futuro, respeitavelmente compreendidas em pé de igualdade e acessibilidade. Era uma cultura de resistência que ali mostrava sua força e seu valor, exigindo o respeito merecido. Como nos lembrou Tay Muller, a comunicação é um direito garantido pela constituição, e as diferenças de uma língua e outra não impede que as coisas aconteçam.
Nossos colegas e camaradas surdos levantaram sua bandeira. Que o resto da comunidade universitária se inspire nessa mobilização, pois essa é uma luta de todos nós. Temos que lutar pela manutenção dos nossos direitos, que já foram conquistados por gerações passadas, e que ameaçam nos tirar todo o semestre.
Que nos lembremos que estamos juntos nessa luta! Que esse ato da comunidade surda ressoe e encontre eco por toda a universidade, deflagrando em nós a coragem há tempo perdida! Nós, estudantes, TAES e professores devemos nos unir e demandar nossos direitos, que são também os direitos de educação para toda a população, com bravura e, claro, sem nos acanhar por não ter hora marcada.
Confira abaixo a carta de reivindicação dos estudantes de Letras Libras na íntegra:
Ao Magnífico senhor Reitor Professor Irineu Manoel de Souza e à vice-reitora Joana Célia dos Passos.
Nós, discentes do primeiro curso superior de Letras Libras do Brasil, entre estudantes surdos e estudantes ouvintes, professores surdos e professores ouvintes do Centro Acadêmico Livre de Letras e de diversos Centros Acadêmicos desta universidade e outros alunos, viemos hoje apresentar nossas reivindicações, manifestar nossa preocupação com a nossa formação acadêmica e expor nossa luta.
Nossa universidade conta com um corpo docente composto por professores internacionalmente reconhecidos pelas pesquisas e atuação em diversas áreas, com grande impacto social e científico. Podemos tomar como exemplo a criação do ENEM em Libras, ou a formação de professores bilíngues, que contribui para o cumprimento da lei 14.191/2021 sobre a LDB. Essas políticas, muito embora tenham proporcionado o ingresso de alunos surdos ao nível superior de ensino, não garantem sua permanência e nem o uso dos serviços ofertados pela universidade, como o hospital universitário, dado que este não possui atendimento em Libras. Precisamos pensar em EQUIDADE em todos os espaços da universidade, para que os surdos tenham acesso às mesmas informações que os ouvintes sem nenhum prejuízo.
Este curso oferecido pela UFSC foi criado com a principal finalidade de “consolidar a formação de professores, pesquisadores e tradutores intérpretes de língua de sinais” conforme consta no projeto político pedagógico, respaldado pelo decreto 5626/2005 que regulamenta a Lei de Libras 10.436/2002, tendo sido o primeiro curso de licenciatura em Letras para língua de sinais na América Latina. Muitas conquistas da comunidade surda perpassam pela UFSC sendo motivo de muito orgulho.
Esta graduação, que busca a acessibilidade, a educação bilíngue e a formação de profissionais atuantes na comunidade surda como fins principais, vem sofrendo com a carência de intérpretes nas aulas. Um primeiro movimento em relação a essa situação foi apresentado anteriormente, entretanto há uma espera muito longa que, juntamente com outros fatores como pandemia, aulas remotas e falta de infraestrutura, estão trazendo um prejuízo pedagógico que não conseguimos mensurar.
Temos receio de que seja apenas uma solução temporária, uma vez que nosso curso vem sofrendo com a precarização há mais de 10 anos. Os estudantes surdos sofrem com a falta de disciplinas optativas em outros cursos, impedidos de cursá-las, justamente pelo número insuficiente de intérpretes no campus.
Em gestões anteriores, foram conquistadas verbas que contribuiriam efetivamente com o cumprimento da nobre missão que nosso curso contempla, porém os recursos conquistados não foram utilizados para os devidos fins que justificavam essa necessidade. Mais de R$5,5 milhões (cinco milhões e meio de reais) seriam investidos na construção do prédio C espelhado no prédio D, este arquitetado para as aulas práticas e aulas teóricas do curso, além de ser usado na manutenção do Letras Libras Ead. Todavia esse valor jamais chegou ao seu destino final. Nosso diretor de centro, Fábio Lopes, nos informou do envio de um documento feito à reitoria pedindo esclarecimento sobre o assunto. Estamos na mesma busca, entretanto nós estudantes sabemos o que significa aguardar mais um tempo e esperar os trâmites: isso significa um dia a mais de atraso frente aos estudantes que não tem barreiras impostas a eles.
Dessa forma, nós, discentes do curso de Letras Libras da UFSC, apoiados também pela gestão do departamento, com o apoio da Direção do Centro de Comunicação e Expressão e também certos do apoio desta Reitoria, nos posicionamos para expor nossas reivindicações:
– Informação sobre o destino das verbas aprovadas para o curso de Letras Libras e a DEVOLUÇÃO dessa verba para seu devido uso.
– Soluções efetivas para garantir intérpretes em número suficiente para o atendimento de toda a universidade, garantindo acesso bilíngue e equânime, não apenas soluções temporárias e sim de maneira efetiva.
– Uma proposta de compensação dos conteúdos que foram perdidos e disciplinas que não puderam ser cursadas até a contratação dos intérpretes.
O Curso de Letras Libras é fruto da luta de muitas pessoas pela visibilidade da cultura surda e pelo direito linguístico. Não recuaremos e nem deixaremos de reivindicar nossos direitos! Nossa luta é por uma universidade que siga sendo referência na área de Libras com estrutura para isso, equânime e construída por todos. As reivindicações listadas acima são o mínimo para a garantia dos direitos já previstos.
Diante do exposto, aguardamos com a máxima brevidade um posicionamento da reitoria.
ASSINAM ESTA CARTA, EM NOME DE TODOS OS ESTUDANTES DE LETRAS LIBRAS, OS REPRESENTANTES DISCENTES: Taynara Ayres Muller Conselvan, Wesley Erly Henrique Malta, Bruno Araújo de Freitas, Evellin Domingos Vieira
DIRETOR GERAL DO CENTRO ACADÊMICO LIVRE DE LETRAS: João Victor da Silva Mariano
*O texto é de inteira responsabilidade do autor e pode não refletir a opinião do Jornal.