[Opinião] O que se perde com o Ensino Remoto?

Foto: Assembleia Estudantil da UFSC em 2019 – Ufsc à Esquerda 

Flora Gomes – Redação UàE – 02/09/2020

O Ensino Remoto já é uma realidade para cerca de 90% das universidades federais do país. Neste semana, a comunidade da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) passa por seus primeiros dias letivos com esta modalidade de ensino. Em apenas três dias, o nosso Painel do Leitor ficou repleto de relatos que trazem um panorama geral dos duros impactos dessa experiência em alunos e até mesmo em professores. Mesmo com poucas aulas, os encontros remotos parecem explicitar o quanto fazem falta momentos cotidianos da vida universitária. Talvez isso retrate o quanto os espaços normalmente secundarizados no debate sobre formação universitária, parecem ser o que garantiam maior contato com propósitos desta instituição para além dos determinados pela classe dominante.

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Os zeladores da burocracia e do produtivismo acadêmico tentam reduzir a experiência no interior das universidades públicas à mera qualificação de mão de obra, valorizando  a produção de conhecimento apenas nos espaços formais. Foram os primeiros a saírem em defesa do cumprimento de critérios exigidos por agências de fomento e instituições do Estado, como o Ministério da Educação, para justificar a adesão ao Ensino Remoto em atividades obrigatórias. 

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A duras penas, o Ensino Remoto nos recoloca a pensar o que de fato é a formação universitária. Se bastassem o cumprimento de critérios formais, nossos problemas durante o isolamento social poderiam ser resolvidos com melhores aparelhos informáticos e acesso livre à rede mundial de computadores. Esse ponto, de fato, tem sido alvo de muitas queixas legítimas. A dificuldade em assistir a uma aula por problemas de conexão resulta na impossibilidade da construção de qualquer tipo de conhecimento. Além disso, também deixa marcas profundas de angústias, que são elaboradas individualmente pelo estudante frente a seu computador. Por mais que se saiba que a responsabilidade por essa condição não seja do estudante, ao ver sua aula seguindo normalmente, mesmo sem que ele possa acompanhar, a mensagem transmitida é de que sua presença é irrelevante ou, pior, de que ele representa um atraso. Esse formato empurra o aluno a sentir como sua a responsabilidade pelo fracasso. As aulas seguem adiante independente da qualidade de apreensão dos estudantes.

Sabemos que a indiferença de alguns professores aos processos de aprendizagem não são novidade trazida pelo “novo normal”. A intensificação dos critérios de produtividade e as amarras institucionais – como o Plano de Acompanhamento de Atividade Docentes (PAAD) – pressionam professores à valorização das publicações acadêmicas em detrimento do comprometimento efetivo com a produção e mediação do conhecimento. Entretanto, a particularidade do Ensino Remoto é a exacerbação dessa tendência, ao ponto de permitir que uma comunicação virtual, sem qualquer interação estudantil, seja qualificada como aula. 

Para além dessas questões que saltam mais facilmente aos olhos, há uma dimensão da experiência coletiva que também vem à tona neste momento. Se por um lado, as angústias e problemáticas com o ensino são intensificadas, por outro, as possibilidades de reação ficam limitadas.

Nos espaços cotidianos da UFSC era muito comum reuniões informais de estudantes em intervalos, nas quais trocavam-se experiências sobre as aulas, o histórico do curso e as possibilidades de coletivização dos problemas enfrentados no interior das salas. Mesmo os espaços informais cumpriam um papel pedagógico importante. O contato entre colegas de diferentes gerações do curso possibilitava uma cadeia de transmissão da memória do curso e da universidade. Um simples café entre alunos poderia transformar a assimilação de uma problemática enfrentada no interior das aulas. 

Se, por exemplo, estudantes viam-se tendo sérios problemas com uma disciplina específica, ao trocar relatos com colegas que os antecederam, poderiam refletir sobre a função da disciplina e acerca das possibilidades de enfrentamento coletivo da questão. Havia uma solidariedade que se constituía pelos corredores, nos almoços pós aulas ou nos encontros espontâneos pela biblioteca. 

A obstrução das possibilidades em constituir uma solidariedade entre estudantes dá-se porque sequer há um reconhecimento entre os próprios alunos durante as aulas. Na plataforma oficial disponibilizada pela UFSC para atividades de ensino são permitidas apenas doze câmeras ligadas simultaneamente, isso quando a conexão permite ligar alguma câmera. Isso significa que na ampla maioria das disciplinas  sequer é possível ver quem compartilha daquele mesmo espaço. Essa condição nos rouba os gestos mais singelos, como os olhares cúmplices trocados entre colegas ao escutar o que está sendo dito. Torna-se penoso vivenciar o  Ensino Remoto com colegas que sequer sabemos quem são. 

A tendência é o deslocamento de raiva de grande parte dos problemas inerentes ao Ensino a Distância às tecnologias em si, ao falharem no cumprimento de seu papel. Entretanto, é necessário retomar que um computador não pode cumprir a função de uma instituição tão complexa como a universidade. 

Mesmo que as tecnologias funcionem muito bem para alguns estudantes, não tornam viáveis a experiência universitária. Nas telas não aparecem as marcas da história como nas paredes, esculturas e monumentos que encontramos ao andar pelo Campus da UFSC. As tradições mais ordinárias da rotina universitária, como: a feirinha às quartas-feiras, os encontros inesperados com livros que saltam aos olhos nas prateleiras da biblioteca e até mesmo as conversas no Restaurante Universitário (RU), não poderão ser vivenciadas por aqueles que iniciam agora sua formação. 

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Ainda que nossas universidades tenham passado por processos que podaram em muito sua potência crítica, o Ensino Remoto não pode ser apresentado como equivalente de uma formação complexa que se dá dentro e fora das salas de aula. A produção de conhecimento de alta qualidade possibilitado pela formação universitária pode ser arma importante para transformar as amarras impostas à instituição, eliminando pela via da crítica tudo aquilo que não convém à classe trabalhadora. 

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