Allan Kenji Seki e Marcos Meira para UFSC à Esquerda – 04/04/2018
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma hoje (4/4) o julgamento do Habeas Corpus impetrado pela defesa do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010). O Habeas Corpus mais polêmico de nossa geração, polarizou as ruas e criou circunstâncias completamente inéditas para a Justiça brasileira e a política nacional.
Em várias ocasiões a presidente do STF, Ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, afirmara que não colocaria a questão da prisão a partir da decisão em segunda instância na pauta de julgamentos da corte. Estavam criadas as circunstâncias da primeira batalha campal. Inúmeras pressões polarizaram com o STF, a Ministra Cármen Lúcia procurava atender ao tom dos interesses das frações médias, altamente reacionárias, clamantes pela prisão do ex-presidente como solução para todos os problemas da sociedade brasileira. A posição, contudo, custou o isolamento da presidente da corte. Ministros como Gilmar Mendes e Roberto Barroso foram à imprensa jogar carvão na caldeira e se digladiaram dentro e fora da corte. Outros Ministros, contudo, procuravam reduzir as pressões sobre o STF, como é o caso do Ministro Marco Aurélio, que levou a situação à beira de uma crise do colegiado ao anunciar que se a Ministra não pusesse o julgamento na pauta ele o faria através de uma questão de ordem. A preocupação do Ministro, aliada a maioria dos demais colegiados era a de que o STF criasse uma circunstância de agitação política que sobrelevasse o voto de cada Ministro às últimas consequências sobre uma matéria que não interessa somente ao ex-presidente Lula, mas ao princípio da garantia jurídica mais basilar.
Vencida, a Ministra Cármen Lúcia cometeu um erro grave, que foi pautar a prisão em segunda instância dando repercussão geral para a decisão sobre o Habeas Corpus de Lula. A estratégia da defesa do ex-presidente não era essa, pelo contrário, seus advogados queriam que as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) servissem como veículo da revisão da posição da corte para evitar que a matéria da prisão ficasse associada tanto à figura pessoal do ex-presidente como fosse interpretada como medida de impunidade. Apesar dos apelos dos advogados presentes na sessão de quarta-feira (21/03), a presidenta insistiu que o julgamento seria sobre o Habeas Corpus. Talvez sua jogada tenha sido retrucar a pressão dos colegas de colegiado que a forçaram a colocar em pauta o julgamento da matéria, encurralando-os para que pronunciassem seus votos sobre um caso específico com ampla repercussão nas ruas e na imprensa.
Fosse assim, poderia ter sido uma vitória. O erro, contudo, persistiria. As pressões foram escalando graus dos mais elevados. Na sessão da quinta-feira (22/03) o problema estava instalado, instados a decidir sobre caso concreto, os juízes polarizaram e levaram suas posições aos extremismos. O Ministro Luiz Fux chegou mesmo ao absurdo de pronunciar que havia uma promiscuidade de habeas corpus. Acontece que o habeas corpus é o único instrumento que um individuo pode invocar para apelar ao juiz a garantia de sua integridade física e seu direito à liberdade. É um dos poucos instrumentos que o sujeito pode entregar escrito por si mesmo, sem a assistência de um advogado e pode entrega-lo em qualquer meio escrito – até mesmo no papel da embalagem de maço de cigarros já foram deferidos habeas corpus contra prisão arbitrária. O Brasil é um dos países cuja questão prisional é das mais graves no mundo, onde sequer as audiências de custódia estão garantidas em conformidade com a lei, portanto, o habeas corpus sempre será um instrumento fundamental para garantir que o individuo possa apelar à justiça por sua liberdade. Outros Ministros seguiram pela mesma linha, mas a maioria se formou no entendimento de que o habeas corpus deveria ser julgado pelo colegiado.
A reviravolta do caso, contudo, foi o custo de uma tarde inteira da corte para decidir apenas que o HC deveria ser julgado, já não havia tempo para adentrar no julgamento propriamente dito. O erro da presidente do supremo emergiu togado: o julgamento do HC foi adiado para o dia 4/4, após a semana de páscoa, portanto, após o proferimento do julgamento dos últimos recursos de segunda instância no Tribunal Regional Federal (TRF) – o TRF decidiu pela manutenção da sentença e, portanto, esgotaram-se os recursos e Lula poderia ser preso a qualquer momento. O único impedimento para dar inicio ao cumprimento da pena agora são os efeitos suspensivos determinados pelo STF.
A situação se conformou de tal maneira que agora o STF não está mais julgamento apenas o Habeas Corpus, mas julgado – de fato – se Lula será preso ou não. O erro da presidente não foi transformar a questão em um imbróglio político, é preciso muita ingenuidade para não compreender que todas as matérias no Supremo são eminentemente políticas. O erro foi tentar conduzir o resultado de tal forma a colocar em xeque todo o colegiado, nisso a presidente Cármen Lúcia foi derrotada e a consequência foi colocar o tribunal numa situação das mais difíceis de sua história.
O julgamento da tarde de hoje (4/4) é da mais notória importância. O PT não representa a esquerda, seu reformismo fraco, criou parte das circunstâncias que hoje colocaram a esquerda no limbo. Os escândalos de corrupção que o Partido protagonizou pesa sobre todos nós e exige posição firme contra essa forma de fazer política: promete a conciliação de classes e custa ao povo brasileira a ameaça do retorno de uma direita absolutamente grotesca e ignorante. Alguns poderiam argumentar que a corrupção é endêmica à política e o PT não foi o único de seus protagonistas, estão lá todos os partidos da ordem. Isto bem é verdade, mas esse não seria um argumento a mais contra o PT?
A esquerda socialista, contudo, tem maturidade para discernir que o julgamento não é sobre a corrupção – que o PT certamente não inventou, mas da qual parece ter se disposto a engendrar em larga medida – ou mesmo sobre o que significou o governo de Lula da Silva. O julgamento é o resultado da ejeção da classe dominante de um partido que deixou de cumprir o papel determinado pelas frações dominantes do capital no Brasil. E, infelizmente, é ao mesmo tempo o julgamento sobre uma das questões penais mais importantes: o direito do réu que não comete crime contra a vida de recorrer em liberdade até que a sentença seja confirmada em última instância e não restem mais dúvidas judiciais sobre a determinação judicial.
O Brasil é o país com a terceira maior população carcerária do mundo, são mais de 726 mil pessoas. Essas pessoas não estão cumprindo suas penas, 40% delas está presa sem ter sido sequer julgada. As audiências de custódia, que seriam um instrumento para regular o poder de detenção provisória, não surtiram efeitos significativos nos dados do encarceramento. Isso significa que todos nós e quaisquer um, independente de quão “cidadãos” e “de bem” imaginemos sobre nós mesmos podemos ser presos arbitrariamente, por erro ou por injustiça e que, mesmo nesses casos, poderia levar anos até que pudéssemos nos deparar com um juiz de custódia para averiguar e reparar o erro – essa pode ser a situação de qualquer dos 290 mil indivíduos presos no Brasil sem julgamento. Por óbvio agrava essa situação que essa população carcerária esteja aprisionada em instituições que não têm sequer metade do número de vagas necessárias.
O problema já seria muito grave e, não obstante, não existe análise séria sobre o sistema carcerário no Brasil que não leve em consideração a questão racial – pelo menos 64% da população carcerária é masculina, jovem, preta e com baixíssima escolarização. A questão racial é uma questão de classe: ao contrário do que o senso comum mais vulgar pensa orientado pela grande mídia, somente 26% de toda a população carcerária está presa por crimes relacionados ao tráfico, somente 11% cometeu crimes contra a vida humana e a maioria, 63%, cometeu pequenos roubos e outros crimes de menor gravidade e que poderiam cumprir medidas educativas.
Infelizmente todos esses debates serão, por conta dos erros cometidos no STF, obliterados pelo fato de que o caso concreto não trata de um Zé Ninguém, mas de um ex-presidente da República. Mas não será apenas pelo fato inédito na história do Brasil de que um presidente da República possa ser preso nos próximos dias, a política, os tribunais e as ruas estão polarizados. À extrema da margem direita vemos os vultos perigosos de ameaças reais à sociedade brasileira. Tomados por uma ignorância elevada à condição de única racionalidade possível, a fração mais extrema da direita identifica o PT como a origem de todos os males, como se o PT tivesse algum dia representado alguma ameaça comunista indigesta.
Essa fração mais extrema da direita brasileira nunca deixou de existir, não é por qualquer razão que o Brasil jamais passou verdadeiramente à limpo a ditadura civil-militar, aliás, nunca passou a limpo nenhuma delas e foram várias desde a proclamação da República. Os vários pronunciamentos de generais sobre o momento político – o mais recente, ontem, do comandante do Exército, general Eduardo Villas Bôas – são evidencias, mais que suficientes, que a democracia nunca foi no Brasil mais do que um véu fino e translucido que os setores reacionários estão sempre dispostos a rasgar quando seus interesses históricos são minimamente contrariados.
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O julgamento de hoje, portanto, tem importância para todos nós. Será um momento decisivo para a esquerda brasileira, ironicamente no julgamento de uma figura que por todas as razões políticas e pessoais não guarda para nós nenhum simbolismo socialista, foi o próprio Lula quem afirmou para uma plateia de empresários em 2005: “Se você conhecer uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque ela tem problemas. Se você conhecer uma pessoa muito nova de direita, é porque também tem problemas. Então, quando a gente está com 60 anos (…) é a idade do ponto de equilíbrio (…) a gente se transforma no caminho do meio”.