Montagem UàE. Foto: Divulgação Ministério da Ciência, Tecnologia e Educação

[Opinião] Precariado docente e a outra face do “ensino presencial puro não vai mais existir”

Imagem: Montagem UàE. Foto: Divulgação Ministério da Ciência, Tecnologia e Educação

Andrea L. Harada Sousapara Universidade à Esquerda – 16/04/2021

No último dia 26 de março, Jânio Diniz, CEO da Ser Educacional, uma das maiores empresas de ensino superior do país, afirmou que a Ser não terá mais cursos 100% presencial[1]. Em 1º de abril, ainda repercutindo os resultados financeiros do quarto trimestre de 2020, o CEO considerou que o ensino presencial puro não vai mais existir. Vai ser híbrido ou digital[2], esse seria, portanto, o legado da pandemia para o setor privado de ensino. Legado este que, diferente da indignação que toma milhares de brasileiros pelas mortes resultantes da covid-19, da negligência, da incompetência e da grave crise econômica e social que estamos enfrentando, explora os danosos resultados desta experiência dramática e faz valer o ditado corrente entre mercadores do quer que seja: enquanto uns choram outros vendem lenços. Haja lenços!

A educação, tanto quanto outros setores, foi impactada pela crise sanitária e a necessidade de distanciamento social que suspendeu aulas e atividades presenciais, elevando o consumo e o uso de plataformas, produtos e serviços digitais para o setor educacional.

No vocabulário da pandemia a palavra reinventar ganhou força e passou a ser uma espécie de imperativo generalizante para caracterizar a ideia de adaptação difícil, mas necessária. O gesto simbólico do “ser” flexível – que vale para pessoas, ideias, empresas – como parte do sujeito neoliberal, denotaria a disposição em se adaptar a diferentes contextos, entre eles contextos adversos como este que vivemos. O termo reinventar passou a designar quase tudo que ocorria na educação da pandemia e serviu inclusive como exigência subjetiva para que professores se adaptassem às novas condições de trabalho, procurando demonstrar compromisso e entrega pessoal diante do momento difícil. Pairando absoluta sobre nossas cabeças, essa reinvenção pouco ou nada teve de ação criativa inerente aos processos inventivos. Tampouco nos lançou à frente.

No ensino superior privado mercantil, embora empresários anunciem uma crise no setor, a pandemia não trouxe grandes novidades em relação ao processo e ao projeto que está em curso há tempos, nesse caso a ideia de reinvenção serve apenas como verniz para lustrar madeira cheia de cupins.  Por isso não surpreendem as declarações do CEO da Ser Educacional sobre o presente e o futuro próximo do ensino superior.

Tanto a expansão do EaD, quanto o ensino híbrido já estavam se consolidando como um novo modo de ser da mercantilização que marca o ensino superior privado com maior intensidade a partir do final dos anos 1990 e que foi favorecida por políticas educacionais de financiamento estudantil, ou, mais precisamente, políticas de financiamento da expansão mercantil e dos interesses dos empresários do setor que se conformaram em grandes grupos econômicos e conglomerados educacionais.

O Decreto 9057/2017 de Michel Temer, referido como novo marco regulatório do EaD, facilitou imensamente a expansão do EaD, pois flexibilizou o credenciamento, a criação de polos desvinculada da oferta de cursos presenciais e as parcerias para difusão de polos, – para citar apenas alguns artigos. Dito de outra forma, os efeitos imediatos do decreto foi o surgimento de inúmeros polos que estavam em processo de credenciamento, polos que passaram a operar dentro de escolas de educação básica, em muitos casos mais de um polo na mesma escola, além de uma gama imensa de cursos, especialmente de licenciaturas.

Em 31/12/2018, último dia de seu mandato, Michel Temer editou a Portaria Nº 1428 que autorizou até 40% da carga horária dos cursos de graduação presencial na modalidade a distância, posteriormente já no governo Bolsonaro a Portaria Nº 2117 ampliou o uso de 40% EaD para os cursos de saúde e engenharia que não estavam inclusos na Portaria de Michel Temer.

A autorização para que as IES pudessem usar até 40% online introduzia o que os empresários da educação chamam de ensino híbrido, muito antes da pandemia que assola o Brasil atualmente. Em outras palavras, a herança do governo golpista de Michel Temer é a difusão desta forma de ensino superior, porque o avanço do EaD em cursos ou disciplinas acaba atuando também no sentido de determinar a forma pedagógica, a forma institucional, as relações e condições de trabalho e os conteúdos formativos que se destinam à formação de grande parcela da juventude pobre brasileira, além de incentivar a produção e a comercialização de vários insumos derivados do EaD.

Por isso, consideramos que as mudanças que hoje são apresentadas pelas empresas educacionais como resultantes de processos induzidos pela pandemia são parte de um projeto para o ensino superior que, manipulado em favor do capital, foi aprofundado neste período, ou seja, o EaD já apresentava crescimento que indicava a superação das matrículas nas graduações presenciais, assim como as graduações presenciais já contavam com 40% da carga horária em EaD.

A novidade forjada na necessidade de reinvenção é pura retórica mercadológica e gerencial para ofuscar a forma agressiva como os empresários têm operado transformações drásticas no ensino superior privado e como sucessivos governos produzem as condições legais para que a mercadoria-educação possa ser explorada à exaustão.  Tomando ainda a Ser Educacional como paradigma desse processo, no início do ano foi apresentado o programa Ubíqua que, segundo consta no site da instituição, promete revolucionar a educação, oferecendo formação onipresente: em qualquer lugar e em qualquer tempo. Esta revolução seria um passo adiante na missão da IES, pois permitiria incluir ainda mais estudantes que tenham dificuldade de acesso e de tempo e, nesse sentido, ampliaria seu caráter democrático e social de atender as camadas mais pobres da população ou nas palavras da diretora acadêmica “Queremos deixar o ensino cada vez mais acessível a todos”.

O programa é dividido em alguns segmentos que compõem a ideia de onipresença: o Ensino Híbrido é uma delas, mas há também o Navega, projeto de internacionalização que promete aulas com “professores internacionais” no formato palestra, tem o Acredita Ser que incentiva o empreendedorismo, o Notável Mestre que promove intercâmbio entre “cases de sucesso” e professores da Ser, estes notáveis são assim definidos pela quantidade de seguidores que possuem em redes sociais. Além disso, o material de divulgação do Ubíqua ainda utiliza o termo trabalhabilidade ao invés da empregabilidade, numa clara adequação aos preceitos do novo mercado de trabalho, no qual vínculos formais são indesejáveis.

Este programa, apresentado ainda antes do CEO enunciar suas previsões, davam conta da reestruturação do ensino superior para esta forma de exploração de uma mercadoria progressivamente eviscerada, tanto é assim que na mesma matéria em que anuncia o fim do ensino presencial, afirma também que a instituição queria ser a Trivago Expedia da educação, surfando na onda do marketplace educacional, cujo interesse já havia sido anunciado por outra gigante do ensino, a Kroton[3]. Aliás, Ser Educacional e Kroton, subsidiária da Cogna, não compartilham apenas o entusiasmo com o marketplace da educação, o CEO da Cogna, Rodrigo Galindo, também é taxativo ao afirmar que “o ensino híbrido é o ensino do futuro”[4].

Contudo, se para os mercadores da educação a pandemia produziu um legado que disseminou a utilização de formas de EaD, sob diferentes signos, por exemplo ensino híbrido, virtual, digital ou online, potencializando a capacidade de lucro das empresas educacionais, para professores e professoras do ensino superior privado, este legado aprofundou os múltiplos processos de precarização que atinge os docentes.

No setor privado práticas como ensalamento, que consiste em juntar turmas de anos e cursos diferentes para que um professor faça o trabalho antes realizado por vários, denotava a intensificação trabalho e a redução da jornada dos docentes de cursos de graduação presencial, revelando-se como um dos modos de ser da precarização que, associada a perda de autonomia, fragmentação do trabalho, instabilidade, baixos salários e falta de condições de trabalho caracterizavam o trabalho de professores e professoras no setor privado.

É sabido que o capital opera no sentido de exasperar tudo que transforma em mercadoria, não é diferente com a educação e é este movimento em curso com a ampliação de usos e abusos do EaD e de seus impactos na formação de parte significativa da classe trabalhadora e no trabalho docente. Além disso, a combinação do EaD com o ambiente pós-reformas (trabalhista, previdenciária, lei da terceirização total), adiciona elementos perversos à função e ao trabalho de professoras e professores, conduzindo parte da categoria profissional para o campo de uma nova fração da classe: o precariado docente.

Sob a ótica do trabalho docente a expansão do uso do EaD é deletéria e ameaça gravemente a categoria, pois a redução de custos para os empresários e o barateamento das mensalidades resultam do uso do maquinário informacional-digital que objetiva o trabalho de professores, fragmentando-o em parcelas desconexas do processo formativo. De tal modo que professores passam a ser separados em subcategorias: conteudistas e tutores são as mais comuns. Já o ato de dar aulas é executado por um professor online que não preparou o conteúdo, nem irá dialogar com os alunos. Além disso, avaliações passam a ser corrigidas por robôs[5], recurso da inteligência artificial, despersonalizando ainda mais o trabalho docente e a relação entre professores e alunos. Como se vê no EaD mercantil o que resta é pouco, ou quase nada, de educação.

Para o funcionamento dessa forma de ensino se dispensa quase tudo, inclusive professores e os poucos que ainda desempenham atividades docentes vivenciam modos violentos de intensificação do trabalho e, ao mesmo tempo e não menos violenta, uma expropriação de seus saberes e fazeres, pois possibilita a reprodução de aulas gravadas e materiais produzidos por professores mesmo depois de encerrado o contrato de trabalho, recentemente um estudante canadense, ao procurar o professor que lhe dava aulas online para esclarecer uma dúvida, soube que o mesmo havia morrido há mais de um ano[6]. Assim a digitalização exaltada pelos CEOs se dá por meio da precariedade que constitui o trabalho docente nesta modalidade de ensino, porque uma vez gravada, a aula passa a ser reproduzida indefinidas vezes.

O nível da desapropriação é tanto que os empresários apresentam alterações de contratos ou contratos de prestação de serviços para os docentes em que ficam autorizados a vender no Brasil ou no exterior os materiais produzidos pelos professores, solapando direitos autorais e levando ao questionamento se, nesta atual conformação, isso seria “docência ou indecência”[7].  Este foi, aliás, o conteúdo da alteração contratual proposta pela Ser Educacional aos professores em agosto de 2020, em plena pandemia. Os docentes da UnG, subsidiária da Ser Educacional, e o Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos, conseguiram, por meio de ações decididas em assembleias, impedir que a instituição continuasse exigindo a assinatura de professores no malfadado aditivo contratual.

Outro aspecto que impacta esta fração da categoria é o trabalho por demanda que indica também processos de uberização, ou seja, o pagamento de professores ocorre de acordo com o trabalho encomendado: elaboração do conteúdo de disciplinas ou cursos, gravação de aulas, oficinas e palestras realizados através de contrato de prestação de serviços sem vínculos formais, prevalecendo a pejotização direta ou a terceirização. No caso de professores contratados como tutores, quando há vínculo formal, o registro se dá deslocando e omitindo sua função docente com o deslocamento para o campo dos trabalhadores técnicos-administrativos que os impede de partilhar dos mesmos direitos dos professores.

Nesse cenário a identidade e a organização desses trabalhadores acaba sendo um obstáculo a mais, visto que o desamparo pela falta de vínculo ou o deslocamento para outra categoria cria cisões no interior do conjunto dos trabalhadores docentes e dificulta, quando não impede, a representação sindical. De outro lado, o sindicalismo docente – com algumas exceções – não tem conseguido fazer frente ao poder patronal e à força da grana das grandes empresas educacionais, quando não, tem sido omisso diante do risco imposto à categoria docente e à educação.

A ampliação desta camada desprotegida e superexplorada de professores resulta, portanto, da combinação do avanço do EaD regulamentado apenas em favor dos empresários e, também, do contexto de devastação do que havia de legislação protetora do trabalho, fazendo da pandemia uma oportunidade de negócios para empresários e conglomerados educacionais.

Como se vê, a noção de flexibilidade – afeita às formas neoliberais – subjaz o discurso da reinvenção da educação e dos docentes no momento da pandemia e, de outro lado, o das oportunidades na crise, que redundam em afirmações como as, aqui referidas, dos CEOs de empresas educacionais ao advogarem um novo tempo em que a tecnologia é mistificada como avanço que reordena o trabalho e a educação. Sob a lógica do capital, entretanto, este mundo pós pandemia tende a reproduzir e aprofundar na educação a quebra do estatuto da docência, convertendo trabalhadores e trabalhadoras do setor em freelances que entregam apenas fragmentos da mercadoria vendida como expectativa de futuro melhor e de mobilidade econômica e social para estudantes da classe trabalhadora.


Andrea L. Harada Sousa, professora, presidente do Sinpro Guarulhos, doutoranda na FE Unicamp, pesquisadora do NETSS (Núcleo de Estudos Trabalho, Saúde e Subjetividade). As reflexões apresentadas neste texto são parte da tese em construção e das experiências e vivências no Sindicato dos Professores e Professoras de Guarulhos.


[1] Ser Educacional planeja acabar com cursos 100% presenciais – Universidade à Esquerda (universidadeaesquerda.com.br

[2] Entrevista: “O ensino presencial não vai mais existir”, afirma CEO da Ser Educacional – Money Times

[3] Cogna prepara marketplace de educação, projeta melhora de resultados de Kroton (terra.com.br)

[4] “O ensino híbrido é o ensino do futuro”, diz CEO da Cogna – Universidade à Esquerda (universidadeaesquerda.com.br)

[5] Laureate usa robôs no lugar de professores sem que alunos saibam – 24/06/2020 – UOL TILT

[6] Professor universitário já falecido continua com ensino a distância (msn.com)

[7] Docência ou Indecência? – Universidade à Esquerda (universidadeaesquerda.com.br)

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