Foto: Henry Ossawa Tanner, “Sodom and Gomorrah” (1920). Detail from here.
Thiago Zandoná – Redação UàE – 21 de agosto de 2017
O intuito deste texto é instigar um debate profundamente necessário e cada vez mais urgente sobre a condição em que hoje se encontra a produção científica no nosso país. Da necessidade primordial do desenvolvimento científico às volumosas agressões que o mesmo vem sofrendo.
Antes de discutir as implicações das parcerias público-privadas (PPP), é necessário resgatar qual o papel da universidade pública. Pois, afinal, para além da gratuidade das universidade públicas com relação às privadas, essas instituições públicas – sejam estaduais, federais, etc – tem, por definição, o papel de produzir e sistematizar o conhecimento artístico, científico e filosófico no seu mais alto nível e torná-lo acessível para a maior parte possível da sociedade de modo a resolver as grandes questões que lhe são demandadas. Como um de nossos militantes bem explicou no debate sobre as empresas juniores ano passado, as universidades públicas são constituídas com esta finalidade, pois esta é uma das poucas instituições as quais a sociedade pode recorrer para indagar seus dilemas, como, por exemplo, a epidemia de câncer.
Há aproximadamente um ano e meio atrás, o Ministério da Saúde decretou a epidemia do vírus Zika como Situação de Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional. Dois meses antes deste acontecimento, já havia um alerta para o alto número de nascimentos de bebês com microcefalia em diversos estados. A partir de então, diversos pesquisadores mobilizaram-se até que o Instituto de Pesquisa Professor Joaquim Amorim (Ipesq), em Campina Grande (PB), completando o trabalho feito em Pernambuco, descobriu que os casos de microcefalia estavam relacionados com o novo vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Este é um ótimo exemplo, pois, após o país ser atacado por uma grande epidemia, as universidades são chamadas a responder e cumprem magnificamente tal tarefa. Devemos lembrar de exemplos como este para entender qual o compromisso dessas instituições.
As universidades públicas não têm que formar para o mercado; a formação dos seus membros (estudantes, pesquisadores, etc) deve ser voltada para desenvolver competência para resolver tais questões sociais. Ao preparar as pessoas para o mais alto nível artístico, científico e filosófico, elas estarão também aptas para aquilo que demanda o mercado de trabalho brasileiro.
O ponto, todavia, não é que as universidades não devem preparar os profissionais para o mercado, mas, restringindo somente a isso, as instituições públicas deixam de lado uma parte importante de uma formação que deve ser muito mais densa e qualificada do que exige o mercado.
Com a presença das iniciativas privadas dentro da universidade pública, o vínculo entre a sala de aula e os laboratórios com aquilo que demanda a sociedade se torna alienado pela via do mercado. E, ainda que essa presença aparenta se restringir apenas a grupos restritos de estudantes, tal alienação subordina, como resultado, tanto os currículos quanto o trabalho dos professores.
É evidente que há uma diferença entre atender as demandas do mercado e as necessidades sociais. E, com isso, não há dúvidas: à universidade pública não cabe responder às necessidades do mercado, nem do governo nem de nenhum grupo específico; mas sim, as necessidades de nossa sociedade. Deve sempre atender aos interesses maiores da sociedade, que é aquela que a custeia e mantém seus princípios. Afinal, a Universidade Pública é uma estratégia para a produção de pesquisa e, por conseguinte, de autonomia de um país.
A instalação de PPPs nessas intuições esvai, por consequência, os meios de produção de conhecimento e tecnologia. Vale salientar que diferente de uma mera técnica (isto é, conjunto de métodos e processos de uma arte, de uma prática), a tecnologia vai mais além: pode ser entendida como o desenvolvimento científico que sistematiza os processos, métodos e técnicas; ou em outras palavras, ao contrário de desenvolver novas técnicas como, por exemplo, a de reduzir o ruído de ar-condicionado, a tecnologia tem um aprofundamento maior e, por isso, mais trabalhoso, como, por exemplo, a tecnologia de replicação de DNA. Repare: técnicas como essa são de interesse primeiro do mercado, logo cabe única e exclusivamente a ele orçar com tais pesquisas. Para além de uma investigação epistêmica exata entre estes dois termos, o que quero chamar atenção aqui é que, para desenvolver de fato tecnologia, é necessário um investimento maior de tempo e recursos. Enquanto, por sua vez, a lógica do mercado está voltada para o desenvolvimento dos meios de produção, e, por isso, de algo mais imediato e diretamente relacionado com aumento da produtividade.
Sendo assim, a inserção das PPPs não só limita ou, por vezes, restringe essas instituições no cumprimento de seu papel, como, por resultado de um situação parasitária, se desenvolve muitas vezes um elevado grau de corrupção endêmica a fim de produzir técnica para o mercado com auxílio de recursos públicos.
Meu objetivo é mostrar como é fundamental manter (ou, atualmente, salvaguardar) a produção científica e tecnológica no Brasil. Há de haver, é claro, diversas mudanças em diferentes setores, em tempos de crise, mas tais estratégias não podem, de modo algum, ser na forma de corte para tal produção, pois, do contrário – isto é, sem um desenvolvimento tecnológico de ponta – a recuperação de uma crise será muito difícil. Isso significa se desfazer do único ou do mais eficaz meio de recuperação de um país. Além, claro, de deixar o país sem qualquer autonomia – perecível a qualquer intempérie. O Estado precisa garantir, por si só, o financiamento de bolsas – como, por exemplo, acabando com a ridícula isenção de lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a seus sócios e acionistas – pois a sujeição à iniciativa privada como meio para manter parte do desenvolvimento científico da nação é abalada ao primeiro sinal de crise – justamente por conta da lógica do mercado.
As ações que o governo vem tomando há alguns anos, entretanto, vão contra a lógica de proteção e investimento no desenvolvimento científico e, por sua vez, de autonomia do Estado. O que mostra, cada vez mais, como o núcleo de política econômica brasileiro não tem um plano delineado, mas, pelo contrário, está completamente perdido.
A redução no número de bolsas é cada vez maior. Conforme divulgado semana passada, o número de bolsas disponibilizadas pelo CNPq em 2014 era de 175.895, já neste ano é de apenas 105.926 (uma redução de 40%). Essa diferença aparece de maneira sutil, pois não acontecem cortes durante o período de bolsa de um pesquisador; o que ocorre é a suspensão quando este encerra o período de bolsa, ou seja, a bolsa não é renovada e passada para outro pesquisador.
Além de perder drasticamente o número de bolsas e, com isso, o número de pesquisas desenvolvidas no país, ainda perdemos partes dos recursos já investidos anteriormente. É o caso, por exemplo, de professores pesquisadores que, por falta de emprego (como, por exemplo, nas universidades públicas cariocas), vão trabalhar fora do país e, assim, levam também todo o investimento público que a excelente formação destes profissionais demandou até então. Ou seja, o país estrangeiro desembolsa apenas o valor de um determinado salário para um pesquisador com uma formação avançada, sem gastar um tostão pela sua formação. Entretanto, também há, infelizmente, outras consequências do corte no desenvolvimento científico e tecnológico, como o abandono de pesquisas em andamento.
O propósito central deste texto é de analisar como o caminho que o governo está tomando atualmente, não só é extremamente equivocado, como também está levando o Brasil para uma situação assustadoramente complicada de reverter.
Basicamente: o Brasil está indo direto para um abismo, talvez, sem retorno possível.
Essa precarização não tem a ver somente com o investimento de bolsas, muito pelo contrário. Um reflexo particular disso na UFSC é a precarização que alguns laboratórios vem sofrendo. E mesmo com tudo isso não houve sequer um esboço de mobilização por parte do DCE-UFSC. O DCE está parado, estagnado, e não podia ser em hora pior! Mais do que nunca é preciso se organizar e combater e, para isso, é essencial uma mobilização efetiva dos estudantes, isto é, desde a base, desde os debates e construções honestamente coletivas.
Infelizmente não há nenhuma solução com as condições dadas; na verdade, as coisas estão na pior condição possível. É necessário, mesmo depois de tantos desapontamentos, reviver a esperança e a consciência de que somente coletivamente podemos batalhar e resistir. E, somente assim, alcançaremos uma organização propícia para desenvolver uma solução combativa a estes ataques.