Vamô Zumbi no Trem

Num trem pras estrelas
Depois dos navios negreiros
Outras correntezas
(Cazuza/Gilberto Gil)

Nessa cidade de pouca gente e com muita gente, os trabalhadores pulsam em artérias entupidas, pra fazer bater não sei qual coração num ritmo tão acelerado. Não é incomum acidentes vasculares. O paulistano que experimenta o cotidiano da mobilidade urbana, além de sucumbir ao estado zumbi requerido para a sua tolerância, está rodeado das vivências antropológicas mais intrigantes, reveladoras dos limites da dignidade humana em nosso modo de civilização.

Esse estado zumbi é rápido. Para quem começa a viver o transporte público, de início, fica tomado por um deslumbre inicial com os novos caminhos, as paisagens inovadoras correndo pelas janelas, o mercado ilícito nos vagões – tem de tudo: água, bugiganga, chocolate, bala de mel e própolis, fone de ouvido, chiclete, amendoim torrado, pipoca doce, e por aí vai; depois, esse deslumbre inicial, três dias depois eu diria, vai sendo substituído por um tédio irrefreável, um tempo morto, enfim, virou zumbi.

Esse efeito zumbi, a meu ver, tem uma dupla função. A primeira de tolerar a realidade do tempo morto, que você pode fazer de muitas formas. A segunda é também para naturalizar certas evidências da sociedade de classes, difíceis de falar a respeito.

Quanto a primeira: as danceterias individuais dos fones de ouvido, o universo dentro dos celulares, a conversa fragmentária de whatspp, livros e mais livros e, principalmente, dormir nas posições mais versáteis e contorcionáveis que se possa imaginar! Ah, e ia me esquecendo, se não for no horário de pico você pode comer uma maça sem morder a nuca de outro usuário do transporte que, aliás, conquista contigo uma intimidade nunca vivida a não ser nos seus amores mais fervorosos.

A segunda é difícil de falar a respeito. Eu só consigo mesmo denuncia-la.

Uma classe de trabalhadores ambulantes, com jingles dos mais variados, gritando seu comércio pelos vagões. Incomoda, mas é digno. O trabalho é sempre digno. Quanto mais suado melhor. Um outro, menos digno, nos lembra com papeizinhos deixados em nosso colo: eu podia estar roubando ou matando um homem de bem, mas estou pedindo… Incomoda. Somos nós os homens de bem, ele já quase não é mais, parece querer dizer. A sua chantagem, de nos proteger dele próprio, é só uma maneira de nos contar que está no limite da dignidade, ainda está pedindo por obséquio e encarecidamente para dividirmos sua pobreza, se a gente não ajudar, a casa vai cair.

Há outros, muitos outros incômodos. Adoecidos, cancerosos, amputados, tinha um cara sem os quatro membros deitado de bruços sobre um skate com uma cestinha de moedas carregada pela boca, perfilando os vagões. Outros desempregados pedindo uma querela pra arroz e feijão pra não sei quantos filhos que deixou famintos. Outros auxiliares das filantropias, ex-usuários de bebida e de drogas convertidos em religião querendo salvar outros. Outros usuários que sentam ao seu lado e, sem o menor pudor, revelam sua história e sofrimento íntimo, como a mãe que teve seu filho assassinado porque na favela é um-pra-dez, ela diz. Eu pergunto: um-pra-dez o quê? Um policial morto pra dez favelados mortos.

Assaltos, furtos, e você não pode, nem sabe como reagir.

O fato é, se você quiser expiar a culpa da sociedade de classes individualmente, vai ter de levar muito dinheiro na carteira. E, bem, o efeito zumbi é mais barato e protege do que, talvez, seja o maior incômodo de ver todas essas violências e obscenidades: o risco de se identificar. Essas coisas, se nos despertam – tô falando dos classe média – dó ou incômodo, despertam o imperativo de se diferenciar. É daí, eu suponho, que nasce a falaciosa meritocracia, a ilusão da ascensão e, principalmente, a nossa subserviência à necessidade sobrepondo os nossos desejos. É pra não ser que, penso eu, muitos são qualquer coisa.

Isso tudo é muito desconfortável. Mas meu caro, guardei o melhor pro final. Você vai acumulando a impotência, a dor, o mal-estar, a culpa, e vai formando uma bolota de raiva no meio do estômago que não faz a mínima ideia para onde dirigir. Dá pra guardar e descontar em casa, pra quem tem a sorte de ter gente que ama e suporta hostilidades injustificadas, mas confesso que vai tornado o lar, lugar de paz, a morada do insustentável. Mas se você desembarca no terminal de Guainazes, às 6h da manhã, você pode usar a sua agressividade da forma mais animalesca e bárbara possível. Para conseguir desembarcar do trem, quando um oceano de gente não quer lhe deixar sair, você empurra e nunca, nunca, nunca mesmo, faça corpo mole.

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