[Opinião] 100 anos da Semana da Arte Moderna

Foto: Mário de Andrade, Anita Malfatti, Oswald de Andrade e Heitor Villa-Lobos – Fotomontagem e arte de Ana Júlia Maciel/Jornal da USP

Flora Gomes e Morgana Martins – 18/02/2022 – Redação UàE

A Semana de Arte moderna, realizada entre os dias 13 e 18 de fevereiro de 1922 em São Paulo, foi – e continua sendo – um evento de extrema importância para a história do Brasil. Ainda que o evento não tenha sido um sucesso, sofrendo inclusive vaias do público de sua época, é notório que o projeto envolvido na organização destes dias repercute até hoje nos debates sobre arte e memória brasileira. Nesta semana o evento completou um centenário.

A Semana ocorreu na época em que o Brasil passava por um período de transição da República Velha (República do Café com Leite, de 1889 até 1930), para o Brasil contemporâneo. A cidade de São Paulo, em razão de um início de industrialização em decorrência da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), estava sendo modificada pela influência do setor industrial-exportador em ascensão. 

Para alguns pesquisadores como Flávio Aguiar, a Semana de 1922 significou “o segundo grito da independência”, pois havia em seus idealizadores a proposta de romper com as tradições artísticas que costumavam basear-se nas criações estéticas europeias. O parnasianismo e o simbolismo predominavam na época. Com a tentativa de romper com essa dinâmica, havia uma insistência em criar uma consciência artística propriamente nacional.  

Também esteve em voga na organização do evento uma pauta relacionada diretamente com as elites paulistanas, pois a cidade de São Paulo costumava ficar fora dos circuitos latino-americanos de artes e estes setores buscavam tornar a capital paulista um centro cultural e cosmopolita. Até então, os eventos costumavam circular por Buenos Aires, Rio de Janeiro e Fortaleza. A Semana de 1922 foi realizada no Teatro Municipal de São Paulo. 

Segundo Alfredo Bosi, em A história concisa da literatura brasileira, seriam grupos da burguesia paulista e carioca – cuja curiosidade intelectual permitia a realização de viagens à Europa, com visitas a exposições de artes e concertos – que poderiam renovar o quadro literário do país. Ainda que a proposta tenha sido de uma ruptura com uma tradição artística Europeia, sua influência é percebida mesmo que seja para sua ridicularização ou recriação pelos modernistas. E a Semana de Arte Moderna foi o ponto de encontro desse grupo.

O fato relevante que antecedeu a semana foi a exposição de Anita Malfatti, que trouxe a novidade de elementos plásticos pós-impressionistas, fruto de sua viagem de estudos para Alemanha e Estados Unidos. Monteiro Lobato, em artigo para a Folha de São Paulo intitulado “Paranoia ou Mistificação?” teceu duras críticas à Anita, que pode inclusive ter ajudado a divulgar a exposição. Oswald de Andrade defendeu Anita, depois Menotti del Picchia, enquanto Mário de Andrade foi um admirador das obras.

Foi aí que um grupo foi se tornando primeiramente ao redor de artistas paulistas. Mais tarde, os contatos foram se estendendo para intelectuais do Rio de Janeiro, como Ribeiro Couto, Manuel Bandeira, Renato de Almeida, Villa-Lobos, Ronald de Carvalho. Bosi trata de que, enfim, foi a adesão de Graça Aranha que significou a possibilidade de o Modernismo lançar-se como movimento.

Mário de Andrade, pouco antes do acontecimento da Semana, escreve em artigo para o Jornal do Comércio que “nunca nenhuma aglomeração humana esteve tão fatalizada a futurismos de atividade, de indústria, de história da arte, como a aglomeração paulista. Que somos nós, forçadamente, iniludivelmente, se não futuristas – povo de mil origens, arribado em mil barcos, com desastres e ânsias?”. Era com esse espírito que se reuniam esses intelectuais, apostando na mudança que o Brasil passava, enfrentando com os pulmões inflados as tradições literárias que já não podiam mais expressar a situação brasileira. 

Ainda, no campo da escrita, podemos pensar a Semana como um momento de experimento em que escritores se aventuram  com o objetivo de romper com as métricas rigorosas do parnasianismo e do simbolismo, dando às palavras uma dinamicidade. Os Sapos, poema de Manuel Bandeira que polemiza com o parnasianismo, demonstra bem essa ruptura. Ele foi declamado na Semana por Ronald de Carvalho, sob grandes vaias do público.

O sapo-tanoeiro,

Parnasiano aguado,

Diz: – “Meu cancioneiro

É bem martelado.

 

Vede como primo

Em comer os hiatos!

Que arte! E nunca rimo

Os termos cognatos.

O evento, apesar da importância notória ainda hoje, não foi exatamente um sucesso. Para Bosi, o fracasso do grupo tem a ver com sua condição de classe e a limitação em repensar com seriedade o problema da inserção de seu movimento na práxis brasileira. Tanto é que o liberalismo de alguns autores os faz aderir ao movimento de 32, quando as elites paulistas buscavam reconquistar o comando político que havia perdido na Revolução de 30. 

Mário de Andrade deu seu parecer na sua conferência “O Movimento Modernista”, de 1942, apontando que a herança que deixou foi o direito permanente à pesquisa estética, a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional. Em contrapartida, definiu os limites do grupo na abstenção de atitude interessada diante da vida contemporânea: “nós éramos os filhos finais de uma civilização que se acabou, e é sabido que o cultivo delirante do prazer individual represa as forças dos homens sempre que uma idade morre”.

As épocas posteriores, de 30 e 40, mostraram que as antigas estruturas de formação do Brasil não foram abaladas pelo Modernismo: a aristocracia do café conviveu muito bem com a elite industrial dos centros urbanos. A compreensão mais profunda dos dilemas materiais e morais da classe trabalhadora brasileira foi reservada aos escritores que se formaram depois de 1930, com Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade. 

Não que o Modernismo tivesse sido, aí, totalmente ignorado, ele abriu portas para as futuras gerações, e nisso concordamos com a posição de Mário de Andrade sobre o legado da atualização da consciência artística de nosso país. Entretanto, foram esses autores pós 1930, junto de outros como Caio Prado Jr, Jorge Amado e Astrojildo Pereira os quais estavam compromissados em intervir na dinâmica de classes do Brasil.

Além de impactar no próprio cenário artístico, a Semana também traz efeitos para a memória coletiva, pois a forma como se narram histórias, retrata-se nos quadros e nas músicas sobre um país, transforma a relação que sua população possui com ele. É possível pensar que o sentido da Semana ainda está aberto, podendo ser significada nos debates contemporâneos sobre a formação social brasileira. Por essa razão, resgatar esse evento e os debates subsequentes a este evento são extremamente importantes para se pensar o papel que as artes podem cumprir em um projeto emancipador para o país.

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