Allan Kenji Seki e Marcos Meira* para UFSC à Esquerda – 06/04/2018
Na tarde de ontem (05/04), o Juiz Sérgio Moro determinou a prisão do ex-presidente Lula da Silva na sede da Polícia Federal em Curitiba imediatamente após oficiado pelo Tribunal Federal Regional da 4ª Região. A decisão, aligeirada, tem notavelmente o objetivo de tornar sem efeitos os recursos que a defesa do ex-presidente ainda poderia solicitar à justiça e, segundo os advogados de Lula, contraria decisão proferida pelo próprio TRF-4. Em nota, o advogado Cristiano Zanin Martins afirmou:
“A expedição de mandado de prisão nesta data contraria decisão proferida pelo próprio TRF4 no dia 24/01, que condicionou a providência – incompatível com a garantia da presunção da inocência – ao exaurimento dos recursos possíveis de serem apresentados para aquele Tribunal, o que ainda não ocorreu. A defesa sequer foi intimada do acordão que julgou os embargos de declaração em sessão de julgamento ocorrida no último dia 23/03. Desse acordão ainda seria possível, em tese, a apresentação de novos embargos de declaração para o TRF4”.
A arbitrariedade demonstra o elevado grau de articulação entre os tribunais para acelerar o processo de prisão do ex-presidente Lula, talvez com o temor de que o entendimento do STF sobre a prisão a partir de decisão em 2ª instância seja modificado ou, certamente, com receio da força de poderá emergir nas ruas do país se houvesse tempo para maior organização política. O TRF-4 havia anteriormente informado que respeitaria os prazos de praxe no tribunal e, pelo menos, até terça-feira – prazo para os advogados de defesa do ex-presidente impetrarem os últimos recursos – não oficiaria o juízo de primeira instância. Contrariando o entendimento do órgão, no entanto, às 17:32:20 de ontem o Juiz Sérgio Moro recebeu o oficio do Juiz Federal Convocado Nivaldo Brunoni e determinou a prisão do ex-presidente às 17:50:10. Entre o recebimento do oficio do TRF da 4ª Região e o despacho de quatro páginas determinando a prisão, transcorreram exatamente 17 minutos e 50 segundos.
Estas não foram as únicas evidências do caso muito suis generis do processo de Lula da Silva. Segundo a Folha de S. Paulo, a tramitação do processo do ex-presidente foi a segunda ação judicial mais rápida da história da operação Lava Jato. Em oito casos nos quais o Juiz Sergio Moro determinou a execução da pena de prisão, os processos levaram entre 1,5 e 2,5 anos – o processo do ex-presidente Lula ocorreu em 8,7 meses.
Toda a condução formal do processo levanta fundada suspeita sobre o Juízo presidido por Sérgio Moro e graves preocupações sobre a magnitude de sua atuação política na vida nacional. No dia 4 de março de 2016, em meio as turbulências diante da possibilidade do impedimento da presidenta Dilma Rousseff, Moro determinou a condução coercitiva do ex-presidente para colher depoimento no âmbito da operação Lava Jato. Foi montada uma megaoperação da Polícia Federal em São Paulo e a imprensa foi previamente convocada para registrar as cenas: policiais fortemente armados conduzindo Lula até o aeroporto de Congonhas para colher um depoimento absolutamente irrisório. Os efeitos chamativos da lógica midiática da Lava Jato, intermediada pelas atividades do Grupo Globo, ficaram tão evidentes que as ações da Policia Federal tiveram que ser reguladas.
Em meio as turbulências políticas, Dilma havia decidido nomear Lula para assumir o Ministério da Casa Civil. As tratativas, amplamente noticiadas na imprensa, começaram antes mesmo da condução coercitiva, mas Lula aceitou assumir o cargo no dia 16 de março. Naquele dia, Moro recebeu o áudio de uma conversa entre a presidenta Dilma Rousseff às 13h32, em que ela afirmava enviar termo de posse através do procurador Jorge Rodrigo Araújo Messias e pedia que ele utilizasse “em caso de necessidade”. Imediatamente o áudio foi transcrito, com erros, e entregue pela Polícia Federal em gabinete ao Juiz Sérgio Moro que liberou o áudio às 16h21 para o “o saudável escrutínio público”, conforme afirmou em despacho. A conversa foi interpretada rapidamente como se fizesse referência a tentativa do Partido dos Trabalhadores (PT) de impedir que Lula pudesse ser preso no âmbito da operação Lava Jato. Evidente que, no contexto mais amplo, a referência de Dilma sobre a “necessidade” dizia respeito à instabilidade política do governo e a necessidade de conferir imediatamente autoridade para Lula iniciar as negociações e conciliações antes da sessão solene de posse que estava marcada.
O áudio foi vazado do gabinete diretamente para a Globo News. Amplamente alardeada, a conversa serviu como “prova cabal” de que Dilma estava buscando proteger Lula da 13ª Vara da Justiça Federal em Curitiba. As ruas foram movidas em desfavor do governo e encerram-se as possibilidades de conciliações de classe para salvar o mandato da presidenta Dilma. No Supremo Tribunal Federal, o Ministro Gilmar Mendes determinou o impedimento da posse de Lula como Ministro-Chefe da Casa Civil. Ao mesmo tempo, o falecido Ministro Teori Zavascki demonstrou o mais absoluto descontentamento com a atitude do Juízo da primeira instância através da emissão de uma advertência formal e exigiu explicações do Juiz Sérgio Moro. A medida do Juiz no caso atentava não apenas contra o sigilo telefônico dos envolvidos ou contra as pessoas diretamente envolvidas, mas contra a própria instituição da Presidência da República.
Portanto, sem adentrar nas questões de mérito jurídico do processo, todas as suspeições clamam por um posicionamento político de absoluta desconfiança em relação à Justiça nesse caso. Isso não nega, em qualquer grau, o envolvimento do Partido dos Trabalhadores – assim como todos os grandes partidos que governam, direta ou indiretamente, hoje – no tipo de corrupção estrutural instaurada no Brasil. Vale lembrar, contudo, que o PT não inventou a corrupção e ela não se extinguira com ele, somente uma democracia de fato poderia romper o mecanismo que leva a corrupção ao lugar que ela ocupa na política cotidiana.
Por outro lado, a lógica da Lava Jato – largamente propalada pela grande imprensa, a qual encontra amplas ressonâncias nos anseios subjetivos das massas – tem sido utilizada proveitosamente como veículo para o crescimento orgânico de laços conjunturais entre parcela da burguesia e frações da classe trabalhadora que ampliam essa base social no espectro mais à extrema da direita. Ela não é o fator determinante da polarização social. Evidente que essa polarização, o golpe e os ajustes fiscais decorrem da crise do capital e que em um país dependente como o Brasil só poderia resultar em sucessivas reversões da ordem política e constitucional – que, infelizmente para nossa classe, ainda não atingiu o ponto seu auge, restando uma abertura histórica que se inscreverá marcada pelas correlações de força neste capítulo da luta de classes.
A esquerda não pode se abster da luta contra a corrupção, pois ela desvela os limites íntimos desta forma muito singular da democracia liberal burguesa e a necessidade de instaurar um regime democrático que acolha a participação direta das maiorias em todas as decisões políticas fundamentais para seu próprio destino. Contudo, ao contrário do que a lógica dos escandalizadores quer demonstrar, toda participação no polo do aparelho estrito do Estado envolve necessariamente inúmeros agentes correspondentes no polo do capital. A forma atual da corrupção no Brasil tem a face e segue o ritmo do ciclo e concorrência intercapitalista e isto não pode ser abandonado pelos socialistas, caso contrário a corrupção só pode ser concebida como de natureza metafísica. Não são os afetos, as emoções, os comportamentos ou as atitudes morais que determinam essa forma de corrupção visceral na política brasileira, mas o contrário, são eles próprios sintomas resultantes do engendramento de uma forma política que além de atuar, balancear e compensar as crises do capital, ainda precisa operacionalizar o tipo de reprodução capitalista dependente brasileiro que só se realiza no terço mais baixo dos padrões de acumulação vigentes no mercado mundial quando dinamizado por uma relação pornográfica – para dizer o mínimo – entre o fundo de acumulação desses capitais e os fundos estatais.
Portanto, se o PT não inventou a corrupção no Brasil, mas por outro lado, em nome da conciliação de classes e de um tipo bastante vacilante de “presidencialismo de coalisão”, ela permaneceu existindo como elemento de coesão política no âmbito do Estado e é justo certo clamor racional por justiça. Mas não esse “justiçamento” evidentemente marcado por uma vingança de classe e que foi fraco e torpe em demonstrar os vínculos de culpa pessoal do ex-presidente Lula nos casos em foi tornado réu. Instrumentalizando a ignorância sociológica e política das maiorias e em benefício de sua própria intolerância, vemos o Estado oferecer em sacrifício os representantes políticos notórios e livrar com penas brandas os agentes pessoais do grande capital industrial-financeiro desse país. Quem tenta fazer disso símbolo de nossas demandas por justiça, só pode querer partilhar com aqueles detratores da manipulação da subjetividade das classes. Não podemos tolerar isso sequer quando provém do nosso lato – e isso vale para qualquer partido, movimento ou organização socialistas.
A condenação do ex-presidente Lula – e a sentença de 12 anos e 1 mês de prisão, com início em regime fechado, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, no caso do tríplex de Guarujá (SP) – mediante as pressões políticas e militares concorrentes, ao arrepio dos princípios tidos pelas maiorias como fundamentos basilares da cordialidade social instaurada, entre outros da constituinte de 1988, representa o fechamento de um ciclo histórico no qual as perspectivas para a esquerda confundiam-se com a possibilidade imaginária de disputar (e ganhar) o aparelho do Estado. Afinal, mesmo o reformismo fraco agenciado pelo pacto de classes do Lulismo tende a mostrar uma intolerância estreita e absoluta. Os traços perversos de humilhação e revanchismos presbiofrênicos, lançados às canetadas dos tribunais mostram que, nesse novo ciclo histórico, não há mais espaço para a conciliação de classes ou qualquer agenciamento descompassado com os interesses mais mesquinhos da acumulação capitalista.
Como nos alertaram muito lucidamente Caio Prado Jr., Florestan Fernandes e Ruy Mauro Marini: não existe no Brasil qualquer traço ou prenúncio de uma burguesia cujos interesses orientem-se, perpassem ou demandem a consubstanciação de um projeto autopropelido de nação. Não há como restar quaisquer dúvidas. Essa gentalha, apequenada e ansiosa por carnificina que saiu às ruas bradando indignadamente contra a corrupção, jamais se disporá levar o combate à corrupção até as últimas consequências e rompendo os laços de promiscuidade política e financeira entre o aparelho estrito do Estado e o Capital.
Essa gente vestida e revestida com o verde de primavera e amarelo d’ouro cantam o hino nacional porque não tolerariam sequer o hino de independência. São, na realidade, profundamente antipatrióticos. Essa gente nada diz quando o capital internacional (ou o capital interno dependente daquele) se apropria funestamente das nossas estradas, nossas ferrovias, nossos portos, nossos aeroportos, nossas terras, nossas riquezas minerais ou nossas últimas grandes estatais; quando o desemprego alcança patamares brutais, comendo com dentes serrilhados mais de 13 milhões de trabalhadores; quando a corrupção tem a ver com a privatização do patrimônio estatal, com as milícias ou com o crime organizado. Ao contrário, ela aplaude as reformas trabalhistas, aplaude a reforma da previdência e aplaude todo e qualquer ajuste fiscal sem questionar os fins a que ele se destina: ao pagamento de uma dívida pública arbitrária e, em grande parte, ilegal para rentabilizar capitais que, em sua ampla maioria, sequer participam do ciclo do capital na economia brasileira.
Seus ódios viscerais contra o ex-presidente Lula e seu partido não se relacionam verdadeiramente contra a corrupção ou em favor de qualquer tipo de patriotismo. E, embora o racismo de classe, a rejeição contra qualquer tipo de traço de identidade com o proletariado tenha sua parte nesta sanha togada, não é este o elemento fundamental. A verdade é que apesar de ter cumprido – e muito bem – o papel de bom administrador do capitalismo brasileiro em tempos de boa-venturança no mercado mundial, na crise profunda na qual estamos mergulhados não há espaço para conciliações de classe: o capital governará ao ritmo frenético das marretadas. O PT e o ex-presidente Lula servem de símbolo contra todo e qualquer sujeito político que se coloque como obstáculo às reformas e ajustes estruturais da economia e da política –para a surpresa dos muitos que ficaram a contar os votos dos ministros do Supremo, isto vale, inclusive, para a Constituição Federal.
E é por isso que a despeito do PT, devemos lutar contra a prisão do ex-presidente. A despeito do PT porque mesmo à baila de uma catástrofe dessas proporções os defeitos do partido não desaparecem: nenhuma autocrítica à política de conciliação de classes e o exclusivismo da rentabilização política do martírio de Lula. Ou seja, mesmo às vésperas da prisão o partido não deixa de fazer convocações patéticas e que preferem adestrar os manifestantes à polarização entre aqueles que estariam com “Lula e o PT” e aqueles que fariam “o jogo da direita, com objetivo de destruir o PT e o projeto democrático e popular para o país”. Nada pior do que tentar forjar uma unidade exclusivista em torno daquilo com que só o PT concorda. A unidade de que precisamos agora para lutar contra a prisão do ex-presidente Lula é a unidade que resguarda nossas críticas e nossas diferenças, mas que nos coloca ao mesmo tempo nas mesmas ruas e contra o mesmo inimigo.
Nossa classe compreende muito bem que os inimigos dos nossos adversários não são nossos amigos. Nossa unidade, neste momento, não nos uniformiza ou serve de pretexto para perder de vista perguntas cruciais. A questão para nós é o fim de um ciclo político no qual velhas ilusões se fizeram de sonhos, até mesmo na esquerda. Este ciclo político chegou ao seu esgotamento, mas o outro ainda não nasceu e o que virá adiante nos conhecerá melhor se dermos as mãos para resistir à tempestade.
*O texto pode divergir das opiniões do Jornal UFSC À ESQUERDA.