Bolsonaro é liberal, do jeito que o Corona gosta

Foto: um dos registros históricos da Marcha da família com Deus e pela liberdade, realizada em 19 de Março de 1964

Arland De Bruchard Costa – Para o UàE – 18/07/2020

A pandemia que marca 2020 chegou a todos os países do planeta de forma mais ou menos parecida e, de acordo com as peculiaridades nacionais, se transformou nas crises econômicas e sanitárias locais, com profundidade parcialmente vinculada à riqueza de cada país mas, sobretudo, à forma como cada Estado nacional conduz o combate ao vírus dentro de suas fronteiras.

Desde o início da pandemia no mundo, o debate sobre as formas de combatê-la foi naturalmente dominado por cientistas especialistas na disseminação desse tipo de doença.  Hoje, com a possibilidade de comparar a evolução das diferentes táticas adotadas pelos países, não restam dúvidas de que a melhor resposta até agora é a supressão do vírus em território nacional com isolamento social e manutenção de rígido controle sobre as fronteiras e a população para identificar e suprimir rapidamente focos novos da doença.

Esses foram os eixos do combate travado pelas nações que, com distintas orientações ideológicas, foram mais eficientes no combate ao vírus, como por exemplo Taiwan, China, Cuba, Coreia do Sul, Nova Zelândia, Tailândia, Filipinas ou Vietnã. Nesses países, com a pandemia controlada, a restrição individual é mais amena, mas inclui proibição de algumas atividades e a obrigação do uso de máscara fora de casa, além da medição obrigatória de temperatura em prédios ou transporte. Em caso de contaminação ou suspeita, o infectado deve revelar ao Estado todos os locais em que esteve para que se possa rastrear outros potencialmente contaminados. Em alguns desses países, é também imposta quarentena obrigatória de 15 dias para qualquer pessoa vinda do estrangeiro – em Taiwan, por exemplo, a pessoa que descumprir essa quarentena é punida com multa de R$34.000 a R$174.000. Com a outra mão, esses Estados buscam formas de garantir o acesso dos cidadãos afetados pela restrição aos bens que necessitam para viver.

Nos casos em que a pandemia saiu do controle e já não era mais possível identificar com precisão a evolução dos focos, os países bem-sucedidos impuseram grave restrição da liberdade individual em bairros, cidades, regiões ou mesmo em todo território nacional por algumas semanas para, controlado o surto, voltar às restrições amenas da liberdade econômica e de mobilidade individual.

Com algumas diferenças nacionais, todos os países mais exitosos no combate à pandemia seguiram essas recomendações. O que então pode explicar que, contra evidências científicas e exemplos práticos, que alguns países tenham escolhido o pior caminho e se mantido nele por tanto tempo?

Pode parecer simplesmente um erro técnico de governos mal assessorados – é isso que afirmarão alguns dos profissionais da saúde. Pode também parecer pura maldade de um governo nazifascista que tem o objetivo de matar o máximo de pessoas possível, como defende o pessimismo que a esquerda brasileira incorporou desde 2013. Ambas respostas são idealistas: a primeira porque iguala o produto da luta política à objetividade técnica do trabalho médico e a segunda porque considera que um país de 210 milhões de habitantes constrói sua história através das dualidades iluministas que contrapõem a luz à escuridão; a razão à barbaridade; a democracia ao nazifascismo.

Como todo idealismo, essas respostas não são apenas insuficientes, como também ocultam que o desempenho brasileiro contra o vírus não é uma exceção no Ocidente: na América do Sul, o Brasil é o terceiro país em taxa de mortalidade (mortos por milhão de habitantes), atrás do Chile de Sebastián Piñera e do Peru de Martín Vizcarra. Na América Central há o bizarro caso de Daniel Ortega, líder guerrilheiro da Revolução Sandinista que preside a Nicarágua há mais de 15 anos e está negando a pandemia e promovendo aglomerações. Na América do Norte, os Estados Unidos também superam o Brasil. Se fosse um país europeu, o Brasil seria apenas o 9º com maior proporção de mortos, atrás de San Marino, Bélgica, Andorra, Reino Unido, Espanha, Itália, Suécia e França.

Todos os 30 países com mais morte por milhão de habitante por Covid estão na Europa ou na América. Nenhum está no Extremo Oriente ou no Sudeste Asiático. Seriam os países europeus e americanos governados por nazifascistas ou pessoas tecnicamente despreparadas e a Ásia por democratas guiados pela técnica? É evidente que não.

Se Bolsonaro fracassa por ser nazifascista aplicador da necropolítica ou simplesmente um sujeito incompetente, como se explicaria o sucesso de Rodrigo Duterte, presidente filipino frequentemente comparado a Trump e Bolsonaro por seu caráter nazifascista, e que, inclusive, orientou as forças policiais a atirar para matar as pessoas que descumprissem as normas sanitárias?

A primeira pista para responder essas perguntas é observar a acusação feita contra os líderes políticos que, na América ou Europa, tentaram seguir as recomendações sanitárias corretas para enfrentar a pandemia: foram chamados de ditadores e autoritários. Talvez para um japonês ou um vietnamita seja difícil de entender isso, mas no Ocidente o autoritarismo é a pior ofensa que se pode fazer a um político porque nessa região o valor mais importante é a liberdade individual. Obrigar a usar máscara e usar o poder de coerção do Estado para punir quem não o fizer? Autoritarismo! Proibir empresas de abrir temporariamente e punir as que abrirem? É proibido proibir! Obrigar todos a realizar check-in em cada estabelecimento ou meio de transporte em que entrar e punir quem não fizer? Ditadura! Fechar a cidade? Metrópole não para! Impedir uma pessoa de submeter-se ao risco de contaminação mesmo que ela queira fazer isso? Tirania! Todas as medidas eficientes de combate à propagação do Covid-19 enquanto não tiver vacina ferem a liberdade individual porque exigem distanciamento social, mas esse é um preço caro demais a pagar para a ideologia mais importante do Ocidente: o liberalismo.

Há aqui uma concepção de mundo, um conjunto de valores que conformam a ética liberal, no qual a liberdade individual é o valor humano mais importante. O pressuposto econômico da doutrina é que uma nação só é próspera na medida em que cidadãos, cientes de possíveis riscos, tomam decisões em benefício próprio e acabam beneficiando o coletivo porque aumentam a produtividade econômica – aqui está a mágica que transforma o egoísmo individual em benefícios coletivos. E esse liberalismo, embora não seja a única corrente de pensamento, é tão dominante no Ocidente que na maioria dos países organiza inclusive a polarização entre os principais partidos: à esquerda vende-se liberdade política (democracia) contra o autoritarismo neofascista e à direita vende-se liberdade econômica (eficiência) contra o autoritarismo comunista.

É esse círculo virtuoso – egoísmo privado como fundamento da prosperidade coletiva – que existe na utopia liberal que o Corona destrói na vida real. O combate ao vírus exige a coerção do Estado sobre o indivíduo porque, embora seja pouco letal em relação a algumas outras doenças, o Covid-19 se dissemina muito rapidamente viajando escondido em corpos sem sintomas. Todo contato humano – a visita a amigos, a rotina de trabalho, o churrasco com a família – é potencialmente multiplicador da pandemia e, por isso, o combate ao vírus exige que a decisão sobre essas ações seja de feita de forma centralizada pela autoridade política de todo território que estiver sob ataque do Corona porque bastam duas pessoas com liberdade de escolha e dispostas ao risco – uma infectada e outra não – para que o vírus se mantenha no território nacional por mais 15 dias.

Todos países que fracassaram em derrotar a pandemia têm em comum o fato de que o Estado não usou seu aparelho coercitivo para determinar o isolamento e punir indivíduos descumpridores das regras. No máximo, fez tentativas de convencimento, deixando a cada um decidir como agir. A consequência foi a mesma para todos esses países, embora varie a intensidade: uma parte da população aderiu às recomendações, mas, passados alguns meses, o Corona permaneceu no território nacional de forma até mais grave do que quando começaram medidas de isolamento. Cada dia que passa, mais pessoas decidem romper o isolamento e aí vem segunda, terceira ou quarta onda até que uma potencial vacina resolva o problema. Nesses países, o objetivo do Estado deixa ser a identificação e destruição de focos da pandemia e as decisões sobre o funcionamento do país passam a ser determinadas pela capacidade do sistema de saúde: se estiver pouco ocupado, abre as cidades; se tiver perto do colapso, fecha.

É a radicalização dessa ética liberal que faz um Estado permitir o armamento da população, mesmo sendo cientificamente comprovado que essa medida aumenta as mortes violentas. Para o liberal mais fiel à doutrina, a arma é também a defesa dos indivíduos contra a eventual tirania do Estado, é a garantia da liberdade. É o caso do presidente Bolsonaro, adepto à radicalidade liberal, que na reunião ministerial tornada pública pelo Poder Judiciário proferiu as seguintes palavras: “Eu quero, Ministro da Justiça, que o povo se arme. É a garantia que não vir um filho da puta aparecer pra impor uma ditadura aqui. […] É fácil impor uma ditadura. Um bosta de um prefeito faz uma bosta de um decreto, algema e deixa todo mundo em casa. Se tivesse armado, ia pra rua”. Alguns brasileiros a mais vão morrer a mais com armas legalizadas? Inegável, é o mal menor necessário para garantir a liberdade individual de armar-se, único remédio contra ditadores.

Por analogia, essa é a razão de Bolsonaro ver mil brasileiros morrerem de Covid-19 todos os dias e não recuar um centímetro em sua defesa da liberdade individual. O Corona está matando, mas, nas palavras do próprio presidente, “Nós temos um bem muito maior até que a vida, é a nossa liberdade”. Se a única forma de controlar a pandemia é restringir liberdade, teremos de conviver com as mortes porque a liberdade individual é inviolável – exceto para criminosos.

Essa é a situação em que o Brasil se encontra e, ao que tudo indica, é também a forma como seguirá nos próximos meses, exatamente como defende Bolsonaro – atualmente o mais poderoso dos liberais brasileiros –, para quem, em meio de  uma epidemia em que se discute que atividades precisam ser mantidas, “atividade essencial é toda aquela indispensável para um homem levar um pão, um prato de comida para sua família”.  Indivíduos analisando riscos individuais e tomando decisões racionais em benefício próprio sem a coerção do Estado, como pregam os liberais mais fiéis à doutrina. Esse é Bolsonaro em seu estado puro, do jeito que o Corona gosta.

Fontes

Multa por descumprir a quarentena em Taiwan https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/04/pouco-contato-fisico-ajuda-a-entender-numeros-baixos-da-pandemia-em-taiwan.shtml

Duterte manda matar quem descumprir as regras https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/04/02/presidente-das-filipinas-diz-que-mandou-atirar-para-matar-quem-descumprir-regras-de-isolamento.ghtml

Declarações de Bolsonaro

1)https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2020/05/07/interna_politica,1145274/bolsonaro-muito-maior-que-a-propria-vida-e-a-nossa-liberdade.shtml

2)https://www.gazetadopovo.com.br/republica/breves/bolsonaro-datena-atividade-essencial

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