Editorial: Eleições 2022 e o destino da classe trabalhadora

No próximo dia 2 de outubro, milhões de brasileiros irão comparecer às urnas para o primeiro turno das eleições nacionais. A situação concreta da classe trabalhadora em nosso país exigiria que neste pleito estivessem no debate público as saídas para a grave crise que enfrentamos não apenas no ambiente político-institucional, mas também na vida econômica das massas, que se deteriora a cada dia. Mais de 33 milhões de brasileiros estão condenados à fome, 70 milhões às miseráveis condições de vida e a imensa maioria do restante do nosso povo se esfola no trabalho árduo sem qualquer perspectiva de que a vida de seus filhos será melhor que as suas, de que os sacrifícios valerão a pena, de que existirá algum presente digno, de que um dia seus corpos poderão repousar em solidariedade e fraternidade.

A realidade é que o capitalismo brasileiro derrotou mais de uma vez, nesta última década, as melhores virtudes e esperanças do povo brasileiro. Coroou-se, em seu reino de desgraças, com quase 700 mil mortos pela pandemia do Covid-19. Brindou-se com as imagens de nosso povo recolhendo lixo para fazer dele alimento aos filhos ou lutando em filas desesperadas por restos de carcaças e ossos. Regalou-se em bom sono enquanto indígenas foram estupradas em massa e seus povos torturados e abatidos como se fossem animais de caça, para dar lugar à mineração e ao gado. Esbanjou-se em mesas fartas enquanto milhões de trabalhadores arriscam-se a cozinhar com fogareiros de álcool ou lenha por não terem o mínimo para comprar gás de cozinha, ou morreram de fome afogados nas ruelas dos vícios e das drogas. A lista é interminável. A situação da classe trabalhadora, daqueles que de fato trabalham e constroem com seus suores, suas carnes e seus ossos a Nação, é um descalabro interminável.

O Bolsonarismo é a face perversa da política que corresponde ao curto circuito do sistema analógico do capitalismo dependente-brasileiro. Sistema que consiste na perpetuação, aparentemente eterna, da alternância entre períodos breves de conciliação de interesses de classes, operadas pelo alto e sob o controle estrito dos interesses das classes dominantes; e, seu contínuo: a violência de classe dos regimes de coerção aberta e seletiva contra quaisquer setores que ousam levantar a cabeça para os interesses históricos da classe trabalhadora. A verdade é que o Bolsonarismo não é novo, é renovado. Toda a história política nacional pode ser descrita no espaço de alternância destas linhas estreitas: não por acaso conhecemos mais períodos ditatoriais que liberais-democráticos. Chegamos ao Bolsonarismo porque nunca experimentamos outra coisa senão essa visão pendular e terrível da vida nacional. 

Isto não quer dizer que a repetição não traga também idiossincrasias. Não pode restar nenhuma dúvida de que Bolsonaro precisa ser vencido com urgência: nas lutas, nas ruas e nas urnas. Assim como também não pode existir dúvidas de que o brutalismo e a violência de classe que o define é uma característica endêmica nacional desde o regime colonial-exportador. Ao contrário do que alguns querem fazer crer, não existe mais espaço para a conciliação sem a depuração da política nacional. Esse sujeito que usou as vestes do Bolsonarismo enquanto este bem lhe serviu, não nasceu nos idos de 2013. Ele sempre esteve presente na dinâmica da política nacional, foi a crise e não a política que lhe colocou diante da ameaça de nova aproximação com as aspirações fascistas — ou a esquerda é mesmo tão desconectada da história de seu povo que não se lembra do revanchismo racista que se seguiu ao abolicionismo brasileiro, o integralismo que lhe deu sequência e o caráter fascista do golpe empresarial-militar de 1964? O Bolsonarismo seguirá vivo e ativo na vida política nacional, pois ele nunca esteve alheio ao seu papel na determinação dos grandes acontecimentos históricos brasileiros. 

As respostas da esquerda, por razões internas e externas, têm sido pífias. Internamente, é preciso reconhecer que a rebeldia, a resistência, a capacidade de revidar e a coragem de enfrentar já não figuram mais entre suas melhores virtudes. 

A verdadeira contribuição da esquerda socialista e revolucionária sempre foi e sempre será aquela de pôr-se à construção da crítica da economia política às determinações gerais e específicas, abstratas e concretas, da miséria das massas e seus destinos. Mais do que nunca, a história exige que a esquerda seja capaz de demonstrar sua capacidade de acertar a conjuntura, de explicar o que determina as circunstâncias de vida da imensa maioria de nosso povo e de oferecer saídas históricas, mas também soluções concretas e imediatas que levem o povo a pedagogicamente fazer uma experiência com os limites do capitalismo e do reformismo.

A esquerda precisa ser capaz de falar sobre o futuro. O futuro da transição ao socialismo, de outro modo de produzir a vida que não seja este que alcançou gloriosamente seu intento na produção da desigualdade, da miséria, do desemprego, da fome para produzir, acumular, concentrar e centralizar as riquezas nas mãos de uma só classe mesquinha e hipócrita. De falar sobre o passado, com a mais dura e rigorosa crítica aos projetos e modelos econômicos que se puseram em marcha na história recente do capitalismo-dependente brasileiro, estes que destruíram a parca vitalidade de políticas sociais que nós conquistamos com muita luta, que decompuseram a capacidade fiscal do Estado em benefício de um sistema altamente autoritário e brutal de acumulação e transferências de valor aos países centrais e aos setores do grande capital interno. E, tem ainda, que ser capaz de falar sobre o presente com as mais razoáveis, urgentes e necessárias saídas, ainda que provisórias, para crise que o capitalismo produziu, mas que nossa classe terá que resolver para estancar sua própria sangria e preparar as condições objetivas para uma transição anticapitalista e antiimperialista. 

Nada mais alarmante que o debate econômico e as soluções transitórias para as mazelas das peculiaridades da crise do capitalismo à brasileira estejam nas mãos, hoje, principalmente de candidaturas à Presidência da República francamente de direita. 

A impossibilidade de representar a necessidade das massas de um debate profundo sobre as bases da vida econômica deixa intocável uma das questões cruciais: o nível de organização da classe trabalhadora decaiu a níveis gravíssimos. Sozinhos e individualizados, os indivíduos tornam-se impotentes e covardes – no melhor sentido do termo. Desprovidos de capacidade de luta, lhes resta fazer a política no espaço público como fazem em suas redes sociais virtuais: concordam ou divergem daquilo que outros analisam, falam ou pensam por eles. Curtem, compartilham ou cancelam fatos, narrativas e pessoas em comportamentos erráticos, efêmeros e facilmente esquecíveis. É por isso que o medo e a impotência se tornaram os dois afetos políticos mais importantes nestas eleições e foram capturados por um sistema político que soube tirar o máximo proveito das boas vontades vencidas das massas. 

Quantos milhares não irão às urnas, com pavor, angústia e inúmeras ansiedades agarrados à ideia de vencer Bolsonaro, mas o farão de cabeça baixa e vencidos? Isso permite entender que amplos setores procuram as mais diversas explicações para engolir a seco (como em 2002, 2006, 2010, 2014) as alianças que se expressam em figuras como Alckmin, Meirelles, Lara Resende, dentre outros. Mas, sabem o que efetivamente significam:  a manutenção do modelo econômico baseado na dilapidação do patrimônio coletivo nacional e na superexploração da força de trabalho.

Sejamos francos. Amarrados à ignorância em relação aos fundamentos primeiros da organização política, da vida coletiva, da subjetivação da política real, parcelas inteiras das massas caminham inertes e cabisbaixas para derrotar Bolsonaro nas urnas, ainda que prometendo a si mesmos que irão cobrar, resistir e se opor à política de conciliação de classes naquilo de pior que ela lhes trará por certo. Mas em seus íntimos, sabem todos, que serão tão impotentes num outro governo como foram no último.

É assim que largos setores dos trabalhadores procuram articular, de forma até razoável e responsável, evitar uma aventura golpista de Jair Bolsonaro e seu aparato de caserna cativo. Tal tática pode, inclusive, dar ao Lulismo a oportunidade de colocar-se diante de um inédito privilégio de não concorrer em eleições de dois turnos. Com isto, espera a imensa maioria da esquerda, reformistas e setores da classe dominante que o país seja poupado de ataques virulentos e golpistas do candidato Bolsonaro, que inegavelmente ameaça e faz muito pela destruição das instituições nacionais. Ainda que tal tática não possa esconder um fato incontornável: passado o primeiro turno, ainda que derrotado, Bolsonaro amanhecerá no dia 3 de outubro da mesma forma como dormiu no dia 1, na condição de Presidente da República em pleno exercício de seu mandato. 

A verdade é esta, nada senão a efetiva demonstração da força popular nas ruas, nas organizações políticas e partidárias, nos sindicatos e na força bruta (se preciso for) pode impedir os intentos de uma aventura golpista. Para que estivéssemos seguros, potentes e destemidos era necessário ter arrancado Bolsonaro pela luta e isto nossos candidatos não queriam – ou alguém aqui encontrou com a verdadeira força petista, que se expressa na mais magnífica máquina de campanha eleitoral já vista, nos atos Fora Bolsonaro? É fato. Pode-se acusar Bolsonaro de ser um dos maiores genocidas da história mundial e compactuar com a ideia de deixá-lo governar mais um dia sequer? Nós só estaríamos seguros se as forças que exigem (mas não pedem) nossos votos, estivessem ao nosso lado quando pudéssemos derrubá-lo.

Quem realmente resistiu nas ruas ao Bolsonarismo. Quem perdeu olhos, sangue e suor nas ruas, há que se lembrar que nunca encontrou a frente de esquerda-liberal que hoje sustenta a candidatura de Lula nas manifestações e esta crítica precisa ser feita. Lula é o maior quadro de massas do país e ele nunca mais, desde o começo dos anos 1980, pisou nas ruas senão para pôr em funcionamento suas campanhas eleitorais. Se tivéssemos juntos na rua, talvez Bolsonaro já não fosse mais presidente ou sequer tivesse chances de chegar ao segundo turno, e arrancado pelas lutas populares servisse como demonstração pedagógica às classes dominantes de que até para a curvatura do dorso do povo brasileiro, há limites. 

Mas a quem poderia interessar tirar Bolsonaro pela força emergente do povo e das lutas? Bolsonaro tem muito valor para certas parcelas da esquerda enquanto ele for o monstro que é. Isto há que ser dito, pensado e analisado para que jamais se repita. O povo brasileiro não pode aceitar que o medo e o terror sejam pretexto para tornar-se cúmplice de sua própria servilidade às urnas da farsesca democracia-liberal.

É preciso não desviarmos os olhos de que um Bolsonaro vencido no primeiro turno poderia até ser mais fraco que este que está aí hoje como idiótico candidato, mas se Bolsonaro foi coerente em algo é em sua característica mais genuína: quanto mais fraco e cercado, mais perigoso. Não há como subestimá-lo, Bolsonaro não liga para a lógica formal, não liga para os sentimentos e apelos morais da esquerda do Leblon, não está nem aí para a transmissão de seu nome à história. Bolsonaro luta por sua sobrevivência política – mas também pessoal, sua e de sua família. O Bolsonaro acuado que tantos desejam, não pode jamais ser subestimado. Precisa ser enfrentado pela organização popular dos trabalhadores.

Neste sentido, nada mais perigoso que depositar todas as esperanças na cesta de ovos cuidada pela senhora raposa, a dona do quintal. Bolsonaro convocou, bem ou mal, fortes manifestações de rua (conservadoras, virulentas e fanáticas como é de seu feitio) no 7 de setembro. Instigados pelo medo, pela pedagogia da não-confrontação e pela desorganização conduzida com maestria pelas centrais sindicais, frentes populares, organizações políticas e sindicatos (pasmem, quase todos “de esquerda”), os atos do Grito dos Excluídos mostraram ao país e ao mundo seu esgotamento e fraqueza. Como desculpa, convocou-se a instrumentalização das ruas pela esquerda hegemônica, com os atos abocanhados pelo Partido dos Trabalhadores (PT) e seus aliados, que convocados sob o emblema de “A esperança vai vencer o medo” (slogan da campanha de Lula em 2002), para o dia 10, foram mais uma vez minguados e letárgicos. Atos que faleceram da mesma doença que fustigou os atos Fora Bolsonaro: a impotência, o medo e fraqueza da individuação da política se tornaram excelentes pontes para o passado, sob a constrição de uma estratégia que disputa não mais e nem menos que o lugar do PT como a única esquerda possível. O PT dominou quase toda a dinâmica da organização popular ao fazer o uso mais efetivo e eficiente da angústia, do medo e da impotência – se isso foi ou não algum tipo de instrumentalização planejada e organizada, só a história dirá. O fato é que o PT da governabilidade não pode ser outra coisa senão uma força instrumental para a projeção de um único líder de massas para o Brasil. Vemos então uma eleição que tem contornos trágicos, a esquerda brasileira incapaz de encarnar posições fundamentais para a classe trabalhadora de modo decisivo. Passou ao largo da esquerda a luta contra as privatizações, a questão tributária, a dívida pública, as leis trabalhistas e previdenciárias, a silagem e a estrutura agrária.

Sem aumentarmos o nível de organização da classe trabalhadora, não há saídas. A esquerda não pode se iludir: sem organizar-se, sem recuperar o cheiro íntimo dos sentimentos das massas pelo exercício persistente, constante e perene do trabalho de base, ela fará tanta oposição a um possível governo Lula quanto fez para derrubar Bolsonaro no auge de sua política genocida, racista, misógina e brutalmente anti-trabalhista. Não podemos apenas nos render a marcha dos acontecimentos e ficar acomodados com essa posição acabrunhada. Passou o momento de enfrentarmos as causas profundas da desorganização da nossa classe, agora é preciso correr contra o tempo.

Teremos pela frente importantes combates para que a esquerda brasileira possa voltar a ter um significado forte na vida nacional: a luta contra a desconexão pequeno-burguesa com os destinos da classe trabalhadora; a luta contra o aparelhamento sobre os sindicatos e movimentos, e a necessidade de retomar um sindicalismo combativo; a luta contra a atomização da política. 

Contra o domínio de nossos medos e esperanças, será preciso reinventar um novo realismo político nascido da vida das massas e de uma verdadeira vanguarda revolucionária. Os socialistas, nisto, tem não apenas a histórica consciência e capacidade de realização, como a razão histórica ao seu lado. É hora de retomarmos uma esquerda, de fato, combativa!

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