Foto: Facebook E.E.B. de Muquem

[Entrevista] EEB de Muquém e a perseguição a trabalhadores da educação em Santa Catarina

Maria Helena Vigo e Maria Fernanda Caxias – Redação do UFSC à Esquerda – 31/03/2023 – atualizado às 22h52min

Em fevereiro de 2023, a orientadora escolar Juliana Andózio, da EEB de Muquém, localizada no bairro Rio Vermelho, em Florianópolis, foi afastada de suas funções no trabalho por uma sindicância acusatória por doutrinação na escola.

As denúncias de doutrinação voltadas para a orientadora, seriam referentes a projetos que trabalhavam temáticas de diversidade e direitos humanos, desenvolvidos por diversos profissionais nas escolas da rede estadual e indicados pelo calendário da Secretaria de Educação, como por exemplo, o dia da mulher e o dia da consciência negra.

Após o afastamento da orientadora, algumas famílias de estudantes intensificaram o tom de acusações e ameaças contra o conjunto da escola, tumultuando reuniões, acuando professores dentro da escola e disseminando mentiras, distorções de fatos e difamações pelas redes sociais, com o intuito de promover pânico moral, aos moldes de atuação bolsonarista. 

Entre as informações falsas disseminadas, destacou-se a “denúncia” de que os banheiros da escola teriam se tornado “unissex”. O que de fato havia ocorrido é que as placas dos banheiros feminino e masculino foram retiradas das portas para realizar a pintura das mesmas. 

No dia 28 de Fevereiro, trabalhadores da escola foram gravemente hostilizados por famílias que cercaram a escola e realizaram agressões verbais e físicas contra os mesmos. Só foi possível sair do local tarde da noite, com a escolta da Polícia Militar. O episódio levou à suspensão das aulas na escola no dia seguinte.

Membros internos e externos à comunidade escolar, movimentos sociais, partidos e sindicatos vêm buscando a revogação do afastamento da servidora e se mobilizam contra perseguições políticas a trabalhadores da educação. Estão sendo enviadas moções de apoio à Juliana e de repúdio à perseguição política nas instituições de ensino. Há um abaixo assinado pedindo pelo retorno da mesma e a formação de um comitê em defesa da escola do Muquém. 

O comitê de defesa da EEB de Muquém, organizado pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Santa Catarina (SINTE-SC), realizou a sua primeira reunião na data de ontem, 30 de março, na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC).

Juliana é pedagoga formada pela UDESC, com especialização em Gênero e Diversidade na escola pela UFSC. Já trabalhou na rede municipal de Florianópolis, no ano de 2015, e atua na rede estadual desde 2016. Foi efetivada como orientadora escolar na EEB de Muquém há três anos.

É uma lutadora e integrante dos sindicatos e movimentos sociais, já foi diretora do SINTE São José de 2017 a 2019 e atualmente é conselheira regional do SINTE Floripa e diretora do SINTESPE.

O UFSC à Esquerda conversou com Juliana sobre a perseguição que vêm sendo realizada contra ela, a escola, e os ataques ao conjunto da educação, confira a entrevista a seguir.

Juliana iniciou sua fala nos contando sobre a formação do comitê de defesa da escola do Muquém:

É uma reunião para estabelecermos uma conversa, para ver como que a gente vai agir, porque não é só o meu caso. Tem várias professoras e professores com medo de estar em sala de aula, porque falar de um específico assunto, assim como direitos humanos, igualdade de gênero, acaba gerando um tumulto para quem não tem conhecimento. Isso impulsiona o preconceito e fica difícil trabalhar, então a gente vai ver como discutir essa questão para também fazer um ato, não sei, a gente vai pensar ali, que tem um comitê formado.

Ao contar sobre os episódios que precederam uma perseguição mais incisiva por parte de algumas famílias de estudantes, Juliana relata que:

Houve um caso de agressão, desacato, em outubro. Nós tomamos as providências cabíveis, criamos uma rede de apoio. Depois, no mesmo mês, ocorreu uma movimentação na frente da escola e um abaixo assinado para tirar a orientadora (Juliana Andózio), tendo como justificativa as falas sobre o banheiro unissex. Eu mandei para a rede de apoio esse pedido de ajuda, porque não existe banheiro unissex e eu não sabia o que fazer. Nós sabemos que quando uma pessoa fala e fica falando, falando, na frente da escola para outros pais, a mentira acaba virando verdade. Então essa história do banheiro unissex está pipocando desde o ano passado. Eu já tinha pedido ajuda, só que agora ela foi se intensificando e em fevereiro ela aumentou. Quando eu fui na Secretaria da Educação, perguntei ao pai que compõe o Conselho Deliberativo Escolar e ele me disse que essa história veio à tona na reunião de pais porque o banheiro, como estava em reforma para pintar a porta, estava sem as placas de menino/menina. Mas era para a reforma, todos os banheiros sempre tiveram plaquinha e sempre foram divididos.

UFSCàE: Então o banheiro unissex nem foi uma proposta?

Nunca! Nunca teve essa pauta, inclusive não está no nosso PPP. As coisas na escola só viram pauta quando vêm da Secretaria da Educação, ou quando estão em algum documento. O que a gente discutiu e iria discutir em assembleia, era qual banheiro os alunos trans poderiam usar, para não dar esse tipo de história. Mas a gente está esperando as autoridades, a questão da lei, porque estudantes trans têm os direitos como qualquer outro estudante. A gente nunca teve problema com eles e com elas.

Ao abordar sobre o trabalho realizado e as temáticas abordadas nas atividades e palestras junto aos alunos, Juliana enfatiza que a atuação se dá embasada pelas leis, diretrizes e orientações que vem da Secretaria de Educação:

Nós falamos de igualdade de gênero, igualdade entre as pessoas, é um tema que inclusive nós temos que trabalhar porque está na Proposta Curricular de Santa Catarina, que traz a diversidade como princípio formativo. Nunca saímos dos parâmetros, das leis. Existem vários temas polêmicos na educação, mas depende muito da situação que está a sociedade para entender esse “tema polêmico”. Se você tem um grupo de pessoas que incentiva as famílias a não aceitarem alguns assuntos, com certeza vai ter resistência, até na questão que fala dos Jesuítas no Brasil. Se você não tem liberdade de cátedra e você não tem uma comunidade escolar que entenda que isso faz parte das diretrizes e bases da educação, fica bem difícil dar aula, porque tudo na educação é polêmico, a educação conta a história do planeta e a história é polêmica, as guerras são polêmicas, a luta das mulheres, além de polêmica é sofrida, até falar das mulheres é polêmico. Até tem pessoas que acham que a escola não deveria abordar tais temas, só que isso consta nos documentos oficiais, a gente não pode deixar de abordar. Acho que isso que está faltando, esse diálogo com a sociedade, essa mediação, porque tem gente que confunde o que é função da escola e o que não é.

O Currículo Base do Território Catarinense aborda temáticas de Diversidade e Direitos Humanos, orientando para o trabalho de problematização do machismo, sexismo, racismo, homofobia, xenofobia e promoção da diversidade e igualdade racial, de etnias, de gênero, sexualidade, entre outros. O mesmo se encontra disponível para acesso público na página da Secretaria da Educação.

A orientadora conta que após o seu afastamento e os ataques à escola, muitos colegas docentes têm relatado à ela os desafios para dar aulas: 

Eles estão resistindo todos os dias, porque a partir do momento que acontece isso, se torna um desafio dar aula. Nos primeiros dias os alunos não queriam respeitar ninguém. Isso que eu estou te falando são comentários que eu escutei porque estou afastada da unidade desde o dia 17 de fevereiro. […] Os professores na verdade estão bem chateados porque a gente começou o ano com uma ideia, construímos um Projeto Político Pedagógico (PPP) bem abrangente, bem acolhedor, a gente estava fazendo vários projetos e de repente acontece isso. Foi também um balde de água fria.

O processo de construção coletiva na escola também vinha se dando por meio da retomada das entidades democráticas: Associação de Pais e Professores, Conselho Deliberativo Escolar e Grêmio Estudantil. Juliana relata que após a pandemia a escola vinha fazendo um esforço contínuo pela participação e o envolvimento da comunidade como um todo em seus espaços organizativos e decisórios.

Juliana dá ênfase a defesa da liberdade de cátedra na educação e aborda a escalada de ataques aos espaços democráticos das escolas e a educação com um todo:

É importante destacar que a liberdade de cátedra dos professores está dentro das leis, das diretrizes da educação, que nós possamos dar as nossas aulas garantidas por lei. Imagina, mesmo estando dentro da lei, você é colocada em dúvida. Que a gente tenha mais proteção no nosso serviço, segurança, a gente não tem segurança nenhuma.

E também é preciso atentar em relação à conjuntura nacional, porque isso não é só aqui. Eu hoje mesmo recebi um card que alguns deputados vão fazer uma palestra sobre doutrinação ideológica. Parece que é uma coisa articulada da extrema direita no Brasil para começar a atacar as escolas.

Esses dias foi protocolado uma lei de um deputado estadual do Partido Liberal, que quer fazer uma lista tríplice para diretor de escola, falando que os diretores não têm condições de administrar uma escola. Ele nem dentro de escola está, nem educador é, e ele coloca uma questão dessas baseado em nenhuma pesquisa, em nenhum fato real.

Nós temos que ficar de olho porque o ataque está sendo direto à educação, não é só comigo, não é só em Santa Catarina. Claro que em Santa Catarina é mais, mas se for parar pra ver em âmbito nacional, quem está sendo atacada é a educação. E são essas figuras, autoridades políticas, que estão impulsionando esse discurso de ódio contra os educadores.

No meu caso, por exemplo, eu nem sabia que era perseguição política. Eu fui saber quando eu vi pessoas políticas, públicas, colocando a minha questão na tribuna. Falando da minha escola, de mim… Eles falam “Orientadora do Muquém” e só tem eu, todo mundo sabe que sou eu. Me expôs, me coagiu. É um dano que jamais, ninguém vai conseguir reparar, porque impulsiona, faz um discurso de ódio e eu tenho medo de sair na rua. Porque as pessoas que não tem conhecimento podem vir a acreditar numa coisa dessas, a gente sabe que acreditam, alguém pode me agredir. Eles são figuras públicas, então para algumas pessoas que votaram neles, tem aquilo como uma verdade acabada. Essas pessoas que são autoridades precisam ter mais responsabilidade ao falar de uma escola, de uma coordenadora, tem que ter provas, fica bem complicado…

Essa interferência de parlamentares dentro da escola, a escola tem suas instâncias…  Se tem alguma coisa acontecendo na escola, que procure as instâncias certas, como o conselho tutelar, por exemplo. Todo mundo tem seus direitos, eu tenho e as famílias também, só que a gente tem instâncias que a gente tem que procurar. Quando você já foi em todas e não deu nada certo, aí a gente pode abrir um diálogo, mas um parlamentar subir numa tribuna para falar de uma servidora pública de forma ofensiva sem ter procurado todas as instâncias, sem esperar terminar o julgamento da professora, acho que isso é um ponto que precisa discutir numa conjuntura nacional, que a gente não pode mais permitir uma coisa dessas. Eu acho que é fundamental, que é o que a gente vai discutir nesta reunião (dia 30).

Leia também: Eleição de direções escolares sob ataque na rede estadual

Os ataques parlamentares a que Juliana se refere, dizem respeito a citações que foram feitas sobre ela e a escola do Muquém de forma difamatória em sessões plenárias da Câmara de Vereadores de Florianópolis.  

A perseguição à Juliana e os ataques à escola do Muquem ocorrem justamente em um momento em que foi instituído uma semana do “escola sem partido” em Santa Catarina, pelo governo de Jorginho Mello, a ser realizada no mês de agosto.

No momento, o processo de Juliana se encontra em fase de defesa, os 60 dias de afastamento da orientadora vencem em abril e segundo ela nos conta, o movimento tem seguido uma direção educativa e de conscientização acerca das leis que regem o funcionamento da escola pública.

A reunião do comitê em defesa da EEB de Muquém aprovou a nacionalização da campanha em defesa da orientadora e a realização de um ato em defesa da liberdade de cátedra, para o dia 18 de abril! 

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