[Opinião] As comunidades indígenas e o impacto da Xawara Covid-19

Foto: Edgar Kanaykõ Xakriabá

Martim Campos  – Redação UàE – 14/07/2020

Publicado originalmente em Universidade à Esquerda

Entre Roraima e Amazonas, lugar das terras indígenas Yanomami, ao entrar em contato com as doenças e epidemias trazidas pelos homens brancos aparece sob a forma da palavra xawara, aquilo que mata os Yanomami e que se mantinha velado, que parecia se propagar inicialmente sem interferência.

A Xawara na cultura Yanomami tem um vínculo profundo com o que significou a violência em suas esferas mais brutas: aquilo que não deveria ser mexido, no interior de suas terras, o ouro, gananciosamente retirado pelos nabëbë (brancos) solta essa substância fumaça do minério. Uma “epidemia-fumaça” alastra-se na floresta e em todos os lugares – e essa fumaça inimiga apareceria na forma do sarampo, por exemplo. Xawara como o que de nefasto aparece neste contato.

O contato com as doenças e pragas trazidas por colonizadores foi responsável pelos adoecimentos e mortes deste povo além da clara brutal violência genocida. Desde o contato na areia, na chegada dos portugueses em seus estados moribundos até as reincidências constantes em contato com doenças vindas de fora de suas comunidades, como foi o caso recente no ano de 1990 por exemplo, em que há uma estimativa de que 20% dessa população (1.800 pessoas) morreram de doenças e violências causadas por 45.000 garimpeiros ilegais.

A doença transmitida para os povos indígenas foi usada inclusive como um meio para o seu extermínio de maneira consciente, onde era prática comum no século XIX de deixar roupas infectadas com sarampo e varíola na mata ou “presenteá-las” para diversos membros das aldeias, fazendo com que estes ficassem contaminados e consequentemente espalhassem o vírus.

A violência e assimilação desta com seus tons de inevitabilidade para um “desenvolvimento” civilizatório macabro, justificadas por interesses garimpeiros, fundiários e missionários, operaram essa marcha de apagamento até hoje continuada, para a extinção desses povos.

Após a ditadura empresarial-militar (período que deixou ao menos 8,3 mil índios mortos) um dos artigos Constituintes de 1988 com a redemocratização, foi o artigo 231, onde os direitos das comunidades indígenas foram pautados e os processos de demarcação das terras indígenas tinham uma previsão para 5 anos. A Fundação Nacional do Indio, (FUNAI), fundada em 1967, passou a ter uma função mais ativa após a redemocratização, e após um ano foi criado IBAMA e no governo lula foi criada a SESAI para atenção saúde básica para índios.

Entretanto, ainda que os avanços nas lutas em relação ao reconhecimento e certos amparos institucionais tenham aparecido neste período, o processo de reconhecimento oficial das terras indígenas se arrasta há décadas sem tréguas, levando no processo a vida de diversos indígenas na disputa, especialmente seus líderes. Além das mortes de indígenas causadas por garimpeiros, foram sucessivas as desapropriações por causa de obras, como foi o caso das 10 mil famílias removidas pela na instauração, segundo os números do Movimento dos Atingidos por Barragens.

Ao refletir sobre a situação das comunidades indígenas neste período do governo Bolsonaro, cabe ressaltar o que aconteceu em Caruaru como um episódio simbólico: escolas e postos de saúde indígenas foram incendiados  em Pernambuco “misteriosamente” após sua eleição.

Além de fazer falas muito claras sobre seus projetos para as terras, após o início do seu governo, o desmonte da FUNAI e sua passagem do Ministério da Justiça para o Ministério da Agricultura, entregando para ruralistas cuidarem das demarcações das terras indígenas. O SESAI também para de atender indígenas nas comunidades urbanas por exemplo e passa a enxergá-lo como um não índio. Um exemplo que podemos ver refletidos nos dados atuais sobre os infectados e óbitos por covid-19 nas comunidades indígenas é sua divergência entre a plataforma do SESAI para o da Instituição Social: de acordo com a primeira, os dados atuais seriam de  10.130 contaminados e 209 óbitos e de acordo com a segunda são 13.801 contaminados e 438 mortos.

A pandemia do Coronavírus, essa nova Xawara, traça um horizonte mórbido, com diversos fatores que colocam em um risco ainda maior as comunidades indígenas.

Vetor chamado “Garimpeiro”

Além da expropriação de terras é trazida então para dentro das comunidades indígenas através dos garimpeiros ilegais que seguem suas explorações neste momento. A estimativa feita pela Fiocruz, é de que mais de 20 mil garimpeiros ilegais que ocupam e exploram a reserva; que entram e saem sem nenhum controle.  Em março, a Funai lança a portaria que restringe entrada em Terras indígenas mas não garantiram a proteção dos invasores de garimpeiros e madeireiros. A Covid-19 se espalha na Terra Indígena Yanomami entre indígenas que vivem perto de zonas de garimpo ilegal de ouro. Em junho, o Instituto Socioambiental (ISA) lançou um relatório que alertava para o risco de contaminação na TIY caso o governo não atuasse para retirar os garimpeiros do território.

Somente no mês de junho foram identificados 109 hectares degradados, ante 39,1 hectares do mês anterior. As regiões onde foram observados aumento foram: A Caça, Waikas, Kayanaú – as mesmas onde foram notificados os caso da Convid-19. Também foram encontradas novas áreas em em Uxiu, Parima, Uraricoera e Homoxi. O aumento em Waikas e Araçá, porém, foram significativamente maiores.

Em abril, os alertas de desmatamento na amazônia aumentaram quase 30% durante a pandemia. Com isto, a operação do IBAMA de fiscalizar as áreas de desmatamento recebeu a resposta do governo com a exoneração de seu diretor, por não ter limitado a fiscalização, o que soa como uma contradição absurda – mas é a extensão das políticas deste governo.

Além disso, os indígenas também foram contaminados por outros que trabalhavam e voltam para suas aldeias, como foi o caso dos trabalhadores nas fábricas frigoríficas da JBS e após ser lançado o auxílio emergencial por exemplo, onde muitos indígenas que não possuíam internet tiveram que se deslocar até as cidades, enfrentando filas e aglomerações para sacar os benefícios, expondo-se ao covid e voltando contaminados para suas comunidades.

A saúde das comunidades indígenas 

A doença se propaga rapidamente dentro das aldeias pela maneira como são estruturadas e pela falta de acesso aos hospitais e postos de saúde, por causa de sua distância, bem como por seu caráter restrito. Com leitos de UTI que colapsaram já no mês de abril em Manaus, com os três meses de atraso dos lotes de testes rápidos que estão chegando à região agora, onde estão os índios do brasil mais próximos da Colômbia, a contenção da pandemia se torna ainda mais difícil. Ainda mais quando o próprio plano de medidas de contingências lançado pelo SESAI possuiu as medidas genéricas da ANVISA, sem conjecturar o caráter específico das comunidades indígenas e suas necessidades. A FUNAI, que recebe mais de 11 milhões para recursos emergenciais para a proteção dos povos indígenas mas gastou menos da metade (39%).

A letalidade também é muito maior entre estas comunidades, como é o caso por exemplo da comunidade Xikrin, em que é o povo mais afetado no Pará (uma morte a cada quatro dias) e a Comunidade kaiowá (MS) onde em 17 dias o número de indígenas infectados cresceu de 1 para 75 casos; Essa falta de estrutura hospitalar na região é gritante: como atender 18.000 indígenas para o sistema público de saúde que conta com cerca de apenas 35 leitos de uti, no município de Dourados?

Apesar de sancionado na quarta-feira passada (08/07), o Projeto de Lei 1142/2020, que reconhece os povos indígenas, quilombolas e demais povos tradicionais como “grupos de extrema vulnerabilidade” veta especificamente os trechos que preveem que o Governo seja obrigado a fornecer “acesso a água potável”, distribuição de cestas básicas e “distribuição gratuita de materiais de higiene, limpeza e de desinfecção para as aldeias”, além de garantir “a oferta emergencial de leitos hospitalares e de terapia intensiva”, e a obrigação de comprar “ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea” para essas comunidades. Não há rastros de dúvidas das intenções do governo quando em seu horizonte se encontra a previsão de acelerar novas regras para demarcação de terras indígenas, pois é na destruição das terras das comunidades indígenas, razão da sua própria existência e não uma mera posse, os interesses são o de manter a exploração fundiária e aniquilar de vez uma cultura ancestral.

Além disso, cabe ressaltar que a fatalidade é comum principalmente entre as lideranças das aldeias, como o cacique e pajé que costumam ser os mais velhos, fazendo parte do grupo de risco. As mortes também ocorrem por homicídios, como o caso do O indígena Ari Uru-eu-wau-wau, de 33 anos, morto na madrugada de sábado (18) em Tarilândia, distrito de Jaru (RO), já vinha sofrendo ameaças há meses, segundo uma liderança indígena Karipuna. Ele registrava e denunciava as extrações ilegais de madeira dentro da aldeia, pois fazia parte do grupo de vigilância do povo indígena Uru-eu-wau-wau.

Essas mortes possuem um impacto simbólico significativo para as comunidades pois são mortes consequentes de intenções de amordaçar a luta da defesa de direitos destes povos, bem como enfraquecem e desarticulam política e culturalmente, como é o caso da morte de anciões.

O luto interrompido e suas marcas

Ao falar sobre as perdas culturais, apagamentos e silenciamentos, uma das principais questões de dor contido em diversos relatos de comunidades indígenas se dá por causa da suspensão de diversos rituais para tentar frear o contágio nos territórios. Com base em orientações da Organização Mundial da Saúde, o Brasil determina que mortos pela covid-19 sejam enterrados com caixão lacrado ou cremados, sem velório longo ou aglomeração, para evitar novos surtos.

Os perigos de uma doença grave como esta, e para a qual ainda não há remédios, é reconhecido na comunidade. Entretanto, os rituais que são realizados são feitos para que quem faleceu e quem ficou possa seguir em frente.

Os abraços, as pinturas, festas com flautas e chocalhos, entre tantos outros elementos destes ritos dão um sentido coletivo para a morte, como é o caso da cerimônia Kuarup, a última cerimônia para chorar os mortos. Os participantes tocam flautas e chocalhos. Troncos de madeira são colocados no centro da aldeia para representar os líderes mortos, que são chamados para receberem, mais uma vez, as pinturas que lhe serviram de adorno no outro mundo. Após chorar por horas, cânticos são entoados pelos homens mais fortes da tribo. Quando o Kuarup termina, acaba também o luto. Mas a festa que aconteceria neste ano foi adiada para o ano que vem por conta da pandemia.

Esses rituais e processos de luto coletivos para boa chegada do falecido em seu novo mundo e as homenagens feitas para homenageá-los, deixam agora um buraco na memória e muita dor nestas comunidades, que não encontram consolos.

Não há consolo dentro da estrutura vivenciada em um país fundado em silêncio e sangue.

*As opiniões aqui expressas são de responsabilidade dos autores e podem não representar a opinião do jornal.

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