Caroline Custódio – Redação UàE – 14/07/2020

Publicado originalmente em Universidade à Esquerda.

Na última semana, o Universidade à Esquerda conversou com o movimento que constrói a Campanha contra o ensino remoto na Universidade Federal de Grande Dourados (UFGD), a qual passa desde junho de 2019 por um período de intervenção do governo federal.

Com o assolamento da pandemia da Covid-19, a reitoria interventora tem implementado o ensino remoto como forma de manter as atividades curriculares obrigatórias na universidade. Diante disso, estudantes, docentes, técnicos e movimentos sociais têm se organizado para combater a entrada do ensino a distância, entendendo que este representa a precarização da educação pública e continuidade de um projeto de privatização que vem historicamente sendo colocado em curso nas universidades brasileiras.

Confira a entrevista para entender como surge esse movimento, quem o constrói, quais são suas pautas e como está a situação na UFGD:

UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Acompanhando os materiais da página de Campanha contra o ensino remoto na UFGD, é perceptível a importância que vocês dão para uma construção de um movimento pela base da comunidade universitária. Como surge essa Campanha e por quais categorias, cursos e entidades ela é construída?

CAMPANHA CONTRA O ENSINO REMOTO NA UFGD: A Campanha surge como proposta de Organização de Base da comunidade universitária, com todas as categorias: estudantes dos cursos de Pedagogia da Alternância como a Licenciatura em Educação do Campo – LEDUC e TEKO ARANDU Licenciatura em Educação Intercultural Indígena, estudantes de outros cursos de graduação e pós-graduação, educadoras/es e técnicas/os do administrativo junto aos Conselhos tradicionais dos povos Kaiowá e Guarani Aty Guasu, Kunãngue Aty Guasu, RAJ – Retomada Aty Jovem, Hana’iti Ho’únevo Terenoe – Conselho do povo Terena, movimentos sociais como Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Marcha Mundial das Mulheres, Movimento das Mulheres Camponesas – MMC, Movimento de Mulheres Autônomas de Dourados, Coletivo de Mulheres da FAIND, Alvorada do Povo e Coletivo Negração. O objetivo da Campanha é a mobilização e fortalecimento entre os povos na luta contra as medidas que implementam o ensino remoto e a precarização da vida, do ensino e do trabalho através de projetos como o “Fature-se” e as reformas já aprovadas que reformulam a Educação Pública no Brasil.

A proposta da construção de um comitê para organizar a campanha contra o ensino remoto da UFGD através da luta pela base tem como princípio a organização inclusiva e a participação ativa e direta de toda a comunidade e movimentos em uma oposição ativa e organizada contra o ensino remoto em qualquer situação. Essa participação direta e apoio mútuo entre estudantes, educadoras/es, técnicas/os administrativos e movimentos sociais não é promovido nas instâncias representativas constituídas pelas entidades, e acreditamos que somente através da luta combativa, fora das vias judiciais e para além das entidades, com a participação ampla da comunidade universitária e dos movimentos sociais que compõe o corpo social e a história da UFGD, é que conseguiremos derrubar essas políticas de morte e extermínio da Educação Pública fomentado pela necropolítica desse governo genocida e reproduzido pela interventoria na escala local. A implementação do remoto além de ser uma medida excludente, perversa e precarizada, atrapalha todo o processo de auto-organização dos povos nos contextos territoriais em que as comunidades têm construído as barreiras sanitárias e redes de apoio contra o avanço da pandemia do novo coronavírus (Sars-cov-2). Somente através da luta coletiva entre comunidade universitária e movimentos sociais é que derrubaremos essas medidas e construiremos uma universidade de todos os povos.

UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Vocês têm reivindicado o combate ao ensino remoto em sua integralidade, o que difere de alguns setores que vêm reivindicando, por exemplo, atividades complementares ou até mesmo disputado dentro das condições para realizar o ensino remoto, como reivindicar disponibilização de computadores e internet. Por que vocês defendem a intransigência ao ensino remoto, em sua totalidade?

CAMPANHA CONTRA O ENSINO REMOTO NA UFGD: De início é preciso dizer que entendemos que essa estratégia de naturalização do ensino remoto como solução para a crise educacional está completamente enraizada nessa política da morte, genocida, eugenista e quer aproveitar a pandemia para “passar a boiada”, inclusive na educação. São atitudes típicas de um governo fascista que atua através da necropolítica, insistindo que o Brasil não pode parar, ou a Universidade não pode parar! Então, lutar de forma intransigente contra o ensino remoto é lutar contra esse governo fascista, genocida e perverso que tem como uma de suas metas, a destruição da Educação Pública. Da mesma maneira, é importante ressaltar alguns pontos que nos dão a certeza de que a luta combativa e intransigente contra o ensino remoto é de grande necessidade e urgência na defesa da educação pública e contra esse governo genocida e excludente.

O primeiro ponto é sobre a elitização na educação. O Brasil é marcado por um abismo de desigualdades socioeconômicas de gênero, classe, cor/etnia que na pandemia deram um salto gigantesco. Neste cenário, as aulas remotas impedirão o acesso e permanência das/os trabalhadoras/es, pretas/os, indígenas, camponesas/es e moradoras/es da periferia no ensino superior e o saldo final será a elitização educacional. É tempo de defendermos, acima de tudo, a vida, o isolamento social e medidas igualitárias para que ninguém, de fato, fique para trás!

O segundo ponto tem a ver com a precarização das condições de estudo. Com a pandemia as/os estudantes perderam acesso às bibliotecas, salas de estudo, laboratórios (das mais distintas áreas do conhecimento), restaurante universitário e outros equipamentos indispensáveis para condições mínimas de ensino, pesquisa e extensão, já que as instituições de ensino se encontram fechadas. A grande maioria de estudantes está hoje compartilhando lares pequenos, sem instalações adequadas ao estudo, sem equipamentos e sobrecarregadas/os, com destaque para as mulheres oprimidas por violência patriarcal, jornadas duplas/triplas de trabalho com tarefas domésticas, educação e cuidados de crianças, adolescentes e idosas/os. Isto sem falarmos da deterioração das condições de saúde física e mental, que não podem ser naturalizadas quando ultrapassamos 70 mil mortes e quase 2 milhões de casos de Covid-19.

Por fim, o terceiro ponto é sobre o ensino remoto ser uma via não-clássica de privatização e concentração dos recursos públicos. Com o aprofundamento do ajuste fiscal desde 2015, a educação pública vem sofrendo cortes sucessivos, tendo piorado ainda mais após a promulgação da Emenda Constitucional 95 do teto dos gastos. Com orçamentos dilapidados das instituições de ensino, o aumento de gastos com empresas privadas do setor de tecnologia da informação e comunicação (TIC) impedirá o aumento, ou mesmo causará a redução, das verbas destinadas à assistência estudantil, reforçando as desigualdades socioeconômicas e precarizando ainda mais as condições de trabalho já deterioradas. Assim, o ensino remoto apresentado inicialmente como solução emergencial não será temporário nem emergencial, e já é possível observar que o investimento em TICs é recorrente nas empresas privadas de educação para reduzir custos, diminuir a sindicalização e a combatividade do movimento estudantil e permitir que o conteúdo seja reproduzido massivamente para diferentes turmas, padronizando saberes e práticas pedagógicas, desvinculando, dessa maneira, o ensino da pesquisa e da extensão. A estratégia deste governo fascista e de várias reitorias é se espelhar nas universidades particulares, que são grandes empresas, para reproduzir e adotar processos de trabalho remoto, privatizando a universidade pública por dentro. Então, o que é vendido como uma solução temporária e emergencial será comprada para uma reestruturação definitiva.

Além desses três primordiais pontos, podemos apontar outros como: a falta de democracia e transparência no uso das verbas, a apropriação de dados públicos e ataques cibernéticos, o ataque à autonomia docente, o aumento da exploração do trabalho e do adoecimento das/os trabalhadoras/es da educação, a transferência de custos para docentes e técnicas/os e o reducionismo pedagógico.

UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Apesar de vocês pontuarem que os problemas do ensino remoto na UFGD não se resumem a forma como ele está sendo implementado, vocês apontam também como as decisões têm disso tomadas de forma autoritária pela reitora-interventora nomeada pelo MEC em junho do ano passado. Como tem ocorrido essas decisões e como tem sido a atuação da interventoria na UFGD?

CAMPANHA CONTRA O ENSINO REMOTO NA UFGD: Estamos há um ano e um mês sob a intervenção do governo federal na reitoria da UFGD. Desde o início da intervenção, como característico de governos interventores, o diálogo sempre foi uma grande dificuldade. Durante a pandemia, a situação só se agravou e todas as reuniões dos conselhos consultivos e deliberativos foram suspensas. A interventoria instaurou então um Comitê Operativo de Emergência (COE), que vem tomando todas as decisões sem consultar ninguém. Nos últimos dias, após desconsiderar a baixíssima adesão a um questionário disponibilizado pela interventoria a estudantes e docentes, esse comitê aprovou um regime acadêmico emergencial para a graduação e pós-graduação, possibilitando as aulas no formato remoto, desprezando as realidades sociais dos povos, estudantes e trabalhadoras/es que compõe o corpo social da universidade. A UFGD é a única universidade federal que ainda não discutiu os impactos da pandemia com a sua comunidade acadêmica! Isso é terrível e perverso, pois coloca em risco estudantes, professoras/es, técnicas/os e terceirizadas/os que terão que sair de suas casas e comunidades em busca de acesso remoto para acessar as aulas ou até para cumprir atividades presenciais, em um momento em que a pandemia avança a passos largos em Mato Grosso do Sul, sobretudo em Dourados. Vale destacar ainda, que a reitoria interventora, aos moldes do governo federal, utiliza da mídia para propagar falácias acerca do processo de implantação do regime acadêmico emergencial, que nada mais é do que senão, a implantação do ensino remoto no âmbito da UFGD.

UNIVERSIDADE À ESQUERDA: Além da luta que vocês vêm construindo na UFGD, em outras universidades também têm surgido movimentos contra o ensino remoto, como na Unesp Araraquara, na USP, na UERJ e na UFRJ. Na opinião de vocês, é importante que essa luta se massifique em outras universidades e se nacionalize?

CAMPANHA CONTRA O ENSINO REMOTO NA UFGD: Antes de tudo gostaríamos de saudar a organização de base e a luta contra o ensino remoto e a educação a distância (EaD), isso nos dá muita esperança e força para seguir firmes em oposição combativa contra o extermínio da Educação Pública. É importante entendermos que o ensino remoto apesar de ser apresentado pelo MEC, pelas reitorias e interventorias como “solução temporária” para o período de pandemia, faz parte de um projeto amplo que visa a precarização do ensino e do trabalho e um processo gradual de privatização.

Um outro ponto que precisa ser ressaltado rapidamente, é que qualquer proposta de boicote como estratégia de luta, como está sendo proposto para as escolas, exige que a ação seja feita a partir de todas as categorias, sobretudo das educadoras e educadores de não oferecerem as matérias. As reitorias e interventorias de forma perversa instituíram o caráter “facultativo” às/aos estudantes como se pudéssemos escolher entre a defesa da vida e cursar “disciplinas”. Essa atitude perversa sustenta a ideia de não obrigatoriedade que reforça a farsa do ensino remoto e a condição de extrema precariedade em que ele ocorre/ocorrerá e retira a responsabilidade das reitorias e interventorias de construir ações que contribuam com a sociedade.

Para derrotar e derrubar essas políticas de extermínio da Educação Pública e o extermínio do acesso dos povos indígenas, dos povos do campo, das águas, das florestas, do povo preto, do povo periférico e tantos outros povos e grupos, precisamos que a mobilização e organização da luta se erga em escala nacional em uma campanha conjunta em defesa da vida de todos os povos e em defesa da Educação Pública. Aqui na UFGD fomos inspiradas de início pela organização de base das/dos compas da UFRJ e UFSC, mas logo em seguida vimos o crescimento dos levantes em outras universidades como UERJ, UFF, UFRRJ, USP, UNESP, UFMG, o que só nos fortalece.

No último dia 08/07 tivemos uma reunião do comitê de base e da campanha contra o ensino remoto na UFGD que contou com a participação de todos os movimentos sociais e conselhos tradicionais Kaiowá e Guarani, e Conselho Terena, que foram citados anteriormente, e com a presença de compas da Campanha contra a normalização do ensino remoto e a educação a distância UFRJ, a Licenciatura em Educação do Campo – UFRRJ, o Jornal Universidade à Esquerda, Resistência Popular RJ, RECC/MS e Alvorada do Povo.

Dessa importante articulação coletiva insurge a proposta de construção da Mobilização Nacional da Campanha contra o ensino remoto e Ead em todas as universidades, escolas e institutos federais do país. E a proposta de construção de campanhas e Plenárias ampliadas entre universidades, escolas públicas e IFs junto aos movimentos sociais. Aproveitando o espaço, fazemos um chamado em conjunto as/aos compas da UFRJ, UFSC, UERJ, UFF, UFRRJ, USP, UNESP, UFMG, para fortalecermos a luta em defesa da Educação Pública, gratuita, de qualidade e universal, em defesa da saúde, teto, terra e vida digna à todas e todos.

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