[Opinião] As lutas contra a EBSERH

Imagem: Elaboração UàE – Originais: ADUNICENTRO e Frente Nacional Contra a Privatização da Saúde

Flora GomesRedação UàE – 01/12/2021

A comunidade universitária da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) vem estabelecendo um processo de lutas nas últimas semanas contra a adesão da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH) no Hospital Universitário (HU). Barrada em 2013, a UFRJ é uma das poucas universidades que conseguiu resistir à adesão na época em que muitos HUs passaram por um processo de privatização. Segundo os dados divulgados pelo Ministério da Educação, há atualmente 36 hospitais universitários e 4 maternidades sendo administradas pela empresa. Nesse contexto, faz-se importante resgatar o histórico de implementação da EBSERH no contexto nacional, bem como recuperar contextos de luta contra a privatização da saúde. 

  • A UFRJ resiste!

  A UFRJ barrou a adesão à EBSERH em 2013. Contudo, a reitoria da UFRJ tem tentado forçar a aprovação da empresa no complexo hospitalar da universidade. Com isso, desde julho deste ano, estudantes, técnicos e professores têm articulado um importante movimento para impedir a privatização do HU intitulado.

No dia 23/11, o Conselho Universitário da UFRJ (CONSUNI) se reuniu novamente para discutir a adesão. O movimento “Barrar a EBSERH na UFRJ” esteve presente na Sala dos Conselhos da UFRJ, onde costumavam ocorrer as sessões, para a realização de um grande ato. O Consuni encerrou com um pedido de vistas que deve ser votado na próxima quinta-feira (02/12) às 9h. 

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  • A implementação da EBSERH nos HUs (1)

A EBSERH foi criada por meio da Lei Federal 12.550/2011, atuando com personalidade jurídica de direito privado e patrimônio próprio, vinculada ao Ministério da Educação, com prazo de duração indeterminado. Sua função seria de administrar instituições públicas federais de ensino ou instituições congêneres, ligadas ao âmbito hospitalar, incluindo, portanto, os hospitais universitários federais das três esferas de governo. Ainda que tenha sido aprovada em 2011, o processo de implementação envolveu os debates sobre a administração pública durante a década de 1980 e, também, o estabelecimento de consensos em torno da Medida Provisória 520, de 2010.

Em relação aos debates da Nova Gestão Pública, cabe recuperar que esse momento significou uma transformação da lógica e das atividades operacionalizadas pelo Estado. Em nome da suposta “expansão” dos “atores sociais” envolvidos na realização das funções do Estado, abriu-se o espaço para atividades da esfera pública não estatal, o que representou a desvinculação do sentido público do que até então eram prerrogativas estatais. 

A ampliação dos “atores sociais envolvidos” significou, na prática, uma reordenação das atividades públicas, incluindo o campo da saúde. Atualmente, o direito à saúde tem se tornado cada vez mais um espaço para a mercantilização, por meio de empresas de medicamentos e equipamentos – as quais muitas vezes integram oligopólios -, seguradoras e por meio da abertura de capitais ligados a planos de saúde em bolsas de valores. 

Ademais da abertura das atividades do estado a diferentes formas de privatização desde o contexto de aprovação da Reforma Administrativa do Estado, a implementação da EBSERH também passou por negociações durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT).

No final de 2010, o ex-presidente Lula encaminhou ao congresso a Medida Provisória 520, que criaria a EBSERH sob a forma de sociedade anônima com capital social representado por ações ordinárias nominativas, integralmente sob a propriedade da união, e com integração das atividades no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Devido à forte mobilização de diversas universidades, a medida não foi aprovada. Uma nova versão foi editada durante o mandato da ex-presidenta Dilma Roussef (2011-2016) e aprovada como a Lei 12550 em 20111. Em relação à MP 520, a Lei da EBSERH diferencia-se pela transformação da antiga proposta de sociedade anônima em empresa pública unipessoal ligada à administração federal. 

Algumas das mudanças institucionalizadas pela EBSERH foram:

Transformação do financiamento dos HUs: além das fontes já existentes (orçamento da União, do MEC e convênios com o SUS), passa a ser permitido a incorporação de bens e direitos suscetíveis a avaliação em dinheiro (como aluguel de instalações) e, também, aplicações financeiras. 

Dupla porta de entrada: a EBSERH passou a ser ressarcida pelos atendimentos prestados aos usuários dos SUS que tenham planos privados de saúde, a partir da identificação na porta de entrada. O ressarcimento já ocorria desde 1998, mas era feito para o Fundo Público de Saúde.

Mudança do regime de trabalho: com a possibilidade de a EBSERH realizar contratações alheias ao regime estabelecido no interior da universidade, a longo prazo, a universidade passou a ter poucos mecanismos para regular essas contratações.  Além disso, os servidores da universidade passaram a ser cedidos à EBSERH, o que transforma a atividade de um servidor público em uma atividade prestada a uma empresa que pode obter lucros.

Leia também:  Trabalhadores em luta contra a EBSERH

Alteração das responsabilidades: a coordenação, acompanhamento e avaliação da gestão dos hospitais, que antes eram realizados por um órgão público (MEC) passaram a ser feitas pela a EBSERH. Atualmente, a empresa pode determinar a distribuição de recursos dos hospitais e das atividades ligadas ao Programa de Reestruturação dos Hospitais Universitários (Reufi). 

Transformação do ensino: como o Hospital Universitário serve como sala de aula para muitos cursos da área da saúde, a alteração do caráter da administração do hospital exerce efeitos pedagógicos aos cursos e estudantes, que passam a ter como espaço pedagógico hospitais ligados a entes privados.

Leia também: O que esperar do Future-se: o exemplo da precarização na gestão privada das OSs e da EBSERH

  • Para não esquecer: a luta contra a EBSERH na UFSC

As discussões sobre a adesão do HU da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) à EBSERH se iniciaram concomitantemente à apresentação deste projeto no cenário nacional. 

Em 2011, o Conselho Universitário da UFSC (CUn) discutiu o projeto e chegou a aprovar por unanimidade em uma sessão extraordinária a permanência do HU como hospital 100% público, gratuito e garantido totalmente pelo SUS. Nesta época, o movimento estudantil da UFSC já se organizava pela defesa do HU. 

A aprovação da Lei da EBSERH no final de 2011 transformou a correlação de forças estabelecidas até então. Nacionalmente, diversas instituições estavam aderindo ao modelo de gestão privada como alternativa à ausência de recursos e de concursos públicos enfrentada pelos hospitais universitários, o que pressionou a discussão na UFSC. 

Em 2012 já expressava-se com mais força a polarização entre os setores contrários e favoráveis à adesão. O movimento contrário à EBSERH se organizou entre entidades estudantis e com movimentos da cidade, como o Fórum Catarinense em Defesa do SUS e Contra as Privatizações. Este movimento pressionou a Reitora Roselane Neckel e a Vice-Reitora à época, Lucia Helena Pacheco, para que o CUn criasse uma comissão para organizar debates públicos em torno do tema. 

No ano seguinte, apesar da efervescência dos debates em âmbito nacional, o CUn debateu o tema apenas duas vezes. Já o movimento contrário à adesão, se articulava fortemente para barrar o processo.

Em 2014 o grupo deu início à campanha “EBSERH Aqui Não Passará – Por um HU 100% Público”, articulando movimentos dentro e fora da UFSC. O movimento defendeu debates públicos e a realização de um plebiscito institucional que embasasse a decisão do CUn. Durante essas sessões do Conselho, pessoas do movimento que não compunham o quadro de conselheiros realizavam pressões pelo lado de fora da sala na qual ocorriam as sessões. 

O plebiscito foi realizado em 2015 e a vitória do movimento contrário à adesão da EBSERH foi avassaladora: 70% da comunidade universitária votou pela não implementação da EBSERH. Após esse resultado, o tema retornou ao CUn e o movimento de campanha se manifestou em sessões seguidas exigindo que o plebiscito fosse respeitado pelos conselheiros. 

Ver também: Por que dizer não à EBSERH? 

No final de 2015, a adesão à EBSERH foi pauta em diversas reuniões do Conselho. O movimento pelo HU 100% público e o Comitê Estudantil contra a EBSERH continuaram realizando pressões para que o plebiscito fosse respeitado. O grupo a favor da privatização do HU também articulava-se durante as reuniões. Quando o processo entrou em votação no órgão em 24 de novembro de 2015, pelas discussões realizadas entre os conselheiros, o movimento contra a EBSERH percebeu que os mais de 8 mil membros da comunidade universitária que votaram no plebiscito não seriam respeitados. Para manifestar a indignação perante esse fato, o grupo invadiu a sessão do CUn e interrompeu a votação. A invasão das sessões do CUn em forma de ato foi feita algumas pelo movimento como forma de expressar indignação frente às discussões realizadas a portas fechadas.

Leia também: A EBSERH e a democracia na UFSC

A continuidade da reunião se deu no dia 1˚ de dezembro de 2015 na Academia da Polícia Militar de Santa Catarina, localizada em um bairro próximo ao campus da UFSC. A Reitora Roselane Neckel convocou os conselheiros a realizar uma “votação segura” na sede da Polícia Militar. Frente a tal ato da reitoria, alguns conselheiros se negaram a participar da sessão dentro do quartel da Polícia Militar. Com isso, a maioria do Conselho votou a favor da adesão. O movimento e os conselheiros contrários à adesão da EBSERH se manifestaram durante toda a sessão do conselho do lado de fora do quartel da PM.  

Esse ato político operacionalizado pela gestão Roselane feriu não apenas a decisão do plebiscito, mas significou um grande ataque à autonomia universitária e aos movimentos de esquerda na UFSC. Ao buscar uma aliança com a Polícia Militar para aprovar a todo custo a EBSERH, a ex-reitora evidenciou a quais interesses servem esse projeto. 

Ainda que a EBSERH tenha aparecido como uma saída para as crise enfrentada pelo HU, os antigos problemas atrelados à ausência de orçamento persistem no hospital, e agora, aliados também às consequências da privatização da gestão no contexto de pandemia da Covid-19.

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(1) ANDREAZZI, Maria de Fatima Siliansky de. Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares: inconsistências à luz da reforma do Estado. Revista Brasileira de Educação Médica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 27, p. 275-284, jun. 2013.

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