Imagem: mohamed Hassan por Pixabay

[Opinião] ERE: desdobramentos futuros de uma política “emergencial” de ensino

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Flora Gomes e Nina Matos – Redação Universidade à Esquerda – 25/11/2020

Estamos em vias de adentrar o último mês de um ano marcado por uma crise profunda, cujos efeitos têm intensificado tendências já em curso em diversos aspectos da vida social. No tocante à universidade, as lutas que vinham ocorrendo nos últimos anos, com o mote central de resistência contra a precarização desta instituição, ganharam novos contornos em 2020.

Além dos conflitos já em curso nos últimos anos — pela recomposição do orçamento, por políticas sérias de permanência estudantil e pela disputa de uma formação de excelência — adentrou no centro do debate o “Ensino Remoto”. Ainda que o Ensino a Distância (EaD) já aparecesse como uma ameaça para as universidades no interior do debate crítico da educação, os efeitos da pandemia forçaram a centralidade dessa pauta.

O Ensino Remoto se apresentou de forma aligeirada como resposta para as universidades frente aos efeitos do parco isolamento social realizado no Brasil.  A lição máxima dos capitalistas: “tempo é dinheiro” foi pautada pelo empresariado como urgência pela volta das atividades. Na época, a necessidade do retorno imediato das universidades foi o axioma norteador do empresariado, gestores da universidade e parte do movimento estudantil.

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Os gráficos com as vidas perdidas pela pandemia foram ficando em segundo plano, ao passo que a necessidade de retorno das atividades de ensino, independente de todos os efeitos sobre a formação e a organização das famílias, foram tornando-se a pauta central de entidades ligadas ao empresariado. Até mesmo a esperança da vacina express expressou um fundamento ideológico para a defesa da normalidade.

Em meio a um processo social catastrófico, com milhares de mortos diários e perdas econômicas profundas, forjou-se um consenso pelo retorno do ensino: primeiro na modalidade remota e, posteriormente, na forma presencial.  Como afirmaram Olinda Evangelista e Renata Flores, “O processo social desagregador que vivemos nos leva a interrogar a ‘educação’, remota ou não, e seu papel histórico. Tudo leva a crer que a escolarização está se tornando uma espécie de ‘palavra ao vento’, campo onde pode tudo, especialmente não ensinar, não aprender e, lamentavelmente, adoecer e morrer”.

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Para os setores que de fato se solidarizam com as vidas perdidas e preocupam-se com o futuro de instituições críticas importantes — tal como ainda são as Universidades Públicas —, o retorno imediato das atividades não estava no centro das preocupações. Por isso, frente à indefinição trazida pela pandemia e em solidariedade aos estudantes mais fragilizados da universidade, defendeu-se a necessidade do cancelamento do semestre. Isso porque, diante de condições novas — tal como nos impôs os efeitos da pandemia —, é fundamental se afastar das respostas mais imediatas e garantir que princípios norteadores guiem as decisões. Invertendo a ordem das urgências e inserindo dúvidas, com perguntas como “por que devem as universidades voltar imediatamente?”, outros caminhos, que não uma saída à direita, foram tecidos. Neste caso, a defesa por uma formação de qualidade e da manutenção da universidade como instituição crítica guiaram a defesa pelo cancelamento.

Agora, após a experiência da ampla maioria das universidades pela adoção do Ensino Remoto, faz-se necessário um balanço crítico acerca deste modelo de Ensino, ponderando seus efeitos a curto e médio prazo para as universidades.

Ensino Remoto: uma experiência traumática

O primeiro semestre de ensino remoto foi experienciado com o mesmo grau de despreparo e desamparo dentro de todas as instituições públicas de ensino superior — independente de quanto tempo levou para a adesão ao prosseguimento do semestre. Em nenhuma instituição foi possível dar um tom que tornasse menos danoso para ela própria o turbulento semestre que seguiu.

Agora, aproximando-se do encerramento do semestre em diversas universidades, com muitas provas e entregas de trabalhos, mais do que nunca os estudantes estão sentindo a falta daquilo que foi deixado para trás em prol de atender os interesses de diversos setores da sociedade — como o empresariado e a mídia — na retomada das aulas. As discussões, os debates que eram possíveis de serem feitos dentro das salas de aula entre colegas e até mesmo com o próprio professor, tudo isso foi substituído a pequenas aulas de, no máximo, uma hora e meia, nas quais  o professor ou apenas expõe o conteúdo ou apenas responde às demandas mais imediatas dos alunos. O espaço da sala de aula, que antes era coletivo, foi fragmentado entre diversos ambientes virtuais — como os fóruns, que introduzem uma lógica de “redes sociais” incompatível com o que significa uma aula de fato.

Até mesmo as coisas mais simples, como o que significa estar presente em uma aula, foi desfigurada para uma adequação simplista da nossa realidade. Estar presente nas discussões dos momentos síncronos já não vale de nada em muitos casos, pois o que importa mesmo são as entregas das atividades de validação de frequência, realizadas individualmente, de modo assíncrono, que definem se o estudante esteve ou não na aula.

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Especialmente entre as instituições que não aderiram prontamente ao ensino remoto, para que fosse possível manter os semestres de acordo com o calendário civil, além da compressão das aulas em pequenos encontros, o próprio semestre foi comprimido em poucas semanas. As leituras, que já estavam comprometidas pelas faltas de acesso às bibliotecas, foram ainda mais prejudicadas pela falta de tempo em trabalhá-las nas aulas. Os conteúdos mais densos foram transpostos para vídeo aulas justamente por essa falta de tempo resultante da inversão de prioridades que o ensino remoto evidenciou.

O problema da precarização atinge toda a universidade, especialmente no que se refere ao trabalho docente — que já vinha sofrendo com os cortes, redução de concursos e dificuldades na contratação de substitutos. Mesmo que exista vontade genuína em muitos professores de promoverem o mais próximo possível de uma aula, as telas cansam os olhos; as dificuldades com as tecnologias tornam as aulas um constante desafio; o formato virtual dificultou uma série de interações que antes eram naturais. Além do já referido sucateamento, com a falta de colegas que ocupem o lugar de substitutos, muitos professores precisaram assumir mais disciplinas, o que tornou o trabalho ainda mais desgastante e dificultou que certas lógicas pudessem ser barradas (como aulas apenas assíncronas, por exemplo).

Há algo que se apresenta enquanto central em toda essa experiência: a individualização absoluta, o completo esvaziamento do sentido da Universidade. Esse processo não se iniciou com o ensino remoto, mas tomou um outro corpo e passou a ser naturalizado entre nós. Se antes podíamos nos encontrar nas salas e corredores, o que possibilitava o surgimento e contato com a realidade expressa na falta de tempo, na simples dúvida ou nas discordâncias com relação àquilo que foi dito, hoje nós estamos escondidos atrás de telas que disfarçam as mínimas imperfeições. Todo aquele sofrimento que antes podia ser compartilhado entre os olhares cúmplices e intervenções espontâneas agora são vividos por cada um em seu próprio cômodo, sem saber ao certo como estão nossos colegas.

Entre muitos, a defesa por formas mais “amenas” do ensino remoto — que se configurou nesse ensino recortado — partiu da premissa de que estudantes já marginalizados estariam excluídos definitivamente do ensino superior se reivindicassemos que nossa formação mantivesse a alta qualidade que esperamos. Mas é justamente por defender não apenas a permanência, mas a formação de excelência desses estudantes que não podemos deixar de lado essa luta. A defesa do sucateamento como política de permanência, inclusive, em instituições como a UFSC, não alteraram em nada o trágico quadro de evasão provocado por um ensino que está muito distante de ser ensino.

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Ao falar da evasão, também é necessário ter certa cautela, pois os dados de cancelamento de matrícula além de serem mascarados por diversas estratégias institucionais — como disciplinas fantasmas e a possibilidade de estar matriculado em apenas uma disciplina — podem ser insuficientes para compreender o sentido da precarização, quando, por exemplo estudantes matriculam-se em diversas disciplinas por elas estarem sendo ofertadas de forma aligeirada, em uma tentativa de driblar problemas estruturais dos próprios cursos.

Nessa pandemia, entre os universitários brinca-se sobre Isaac Newton ter criado a Teoria da Gravidade quando encontrava-se em isolamento devido a epidemia de peste bubônica. Contudo, foi ele também quem “popularizou” a metáfora dos anões sobre ombros de gigantes ao dizer que sua genialidade deriva não de um aspecto individual, mas sim das bases fornecidas pelo conhecimento que demais estudiosos construíram. Não estamos rumando ao oposto do que a história mostrou ser o caminho mais adequado?

O que nos resta?

A suposta excepcionalidade do Ensino Remoto — base argumentativa dos setores interessados na volta imediata das atividades de ensino — tem cada vez menos lastro na realidade. Em um texto publicado ontem pela professora Carolina Picchetti no Universidade à Esquerda, foram apresentados alguns argumentos sobre a transmutação desse discurso inicial — da suposta excepcionalidade — que tem fornecido as bases de uma nova legalidade que reorganiza profundamente as atividades de ensino, tanto para docentes quanto discentes.

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No final de outubro foram divulgadas duas portarias normativas que dão o fundamento legislativo para um temor que vinha sendo apresentado apenas como horizonte temerário. A Portaria nº 433, institui o Comitê de Orientação Estratégica (COE) para promover iniciativas de expansão da Educação Superior. A segunda, de nº 434, apresenta um Grupo de Trabalho voltado para a expansão do EaD. Ambas as legislações têm como alvo descrito as Universidades Federais e possuem como representantes organismos ligados ao empresariado e ao Estado interessados na expansão do EaD. São portarias que, portanto, orientam trabalhos que tornem possível a operacionalização à longo prazo do EaD nas universidades federais. 

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Lalo Watanabe Minto, em sua coluna para o Universidade à esquerda, apresentou uma série de legados do Ensino Remoto para a educação brasileira, como a expansão de formas de privatização pela venda e compra de equipamentos produzidos por instituições privadas e a ampliação das desigualdades devido aos altos custos necessários para acessar as tecnologias requisitadas. O pesquisador também debate como esse modelo naturaliza uma concepção de educação que deposita parte da responsabilidade do processo de ensino e aprendizado para fora das instituições educativas. Além disso, as tecnologias reorientaram as dinâmicas escolares ao prometer transformarem o suposto caráter tedioso do ensino.

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Como foi apresentado na primeira parte deste texto, os impactos a curto prazo já são um dado empírico para estudantes e professores. Entretanto, o que precisa ser salientado constantemente é de que talvez não se trate de uma excepcionalidade que chega como um pacote no momento de pandemia. As mudanças nos planos de ensino e no formato das aulas, impulsionadas pelo Ensino Remoto, podem ser um legado permanente para as Universidades, sobretudo em momento de crise fiscal.

No Projeto de Lei Orçamentária (Ploa) de 2021 está prevista uma redução de 18,2% do orçamento discricionário (despesas não obrigatórias). Se em 2019 o anúncio da redução orçamentária promoveu uma série de mobilizações e greves, em 2020 o Ensino Remoto mascarou as consequências desta redução. As previsões orçamentárias para o próximo ano sequer geraram indignação. Assim, o Ensino Remoto ou Híbrido pode surgir como uma resposta a esse problema que tem sido permanente para o Estado brasileiro — ao menos desde de 2011 as universidades federais vêm sofrendo sistemáticas reduções orçamentárias.

Em cursos em que há déficits históricos no quadro de professores, recursos do Ensino Remoto podem operar como um paliativo para um problema gravíssimo, ao proporcionar, por exemplo, o uso de materiais assíncronos para cobrir a falta de concursos públicos e contratação de substitutos — que permanece lá e pode nunca mais ser reposta.

Ademais, aqueles efeitos da precarização sentidos diariamente pela comunidade universitária ao caminharem pela instituição — como a ausência de equipamento, a deterioração dos prédios e a falta de insumos nos laboratórios — não aparecem mais à vista.

Assim, além de  ser um perigo a longo prazo para a formação crítica da classe trabalhadora, o Ensino Remoto pode aparecer como um silenciamento ao grito de luta que ecoa há muitos anos.

Se por um lado temos pouca ou nenhuma certeza sobre quando serão distribuídas vacinas, temos bastante convicção sobre a necessidade de defender criticamente as universidades públicas. Por ser ainda uma instituição que garante o mínimo espaço para formação crítica da classe trabalhadora, essas formas que visam aprofundar a lógica mercadológica do papel docente e discente nas universidades precisam ser duramente combatidas. Essa instituição, sem dúvida, necessita de mudanças importantes, mas a crítica e as transformações devem sempre ser buscada por aqueles que possuem como horizonte a mudança radical da sociedade.

 

Os textos de opinião são de responsabilidade dos autores e não representam, necessariamente, as posições do Jornal.

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