Flora Gomes e Nina Matos* – Redação UFSCàE – 17/06/2022
As entidades estudantis são uma peça chave na política das universidades. Não apenas por deterem certa institucionalidade, que permite aos estudantes colocarem-se em espaços formais e institucionais da universidade, circulando para outros setores as discussões que realizam entre si, mas também por ser um espaço importante de aproximação com as lutas. Há poucos espaços onde hoje a juventude pode tomar a política pelas mãos e o movimento estudantil, muitas vezes, é o primeiro lugar em que jovens com trajetórias tão distintas podem compartilhar um objetivo em comum.
Aqui neste jornal temos feito o trabalho de acompanhar e divulgar as ações dos Centros Acadêmicos (CA) presentes na UFSC, em especial os processos eleitorais, que estão fervilhando neste momento. Esses períodos são geralmente marcados por disputas calorosas, criando ambientes propícios para que se possa discutir o sentido que uma entidade como um CA deve ter frente aos dilemas da conjuntura.
Dentre todos estes processos, há um sobre o qual gostaríamos de nos deter, a fim de promover um debate sobre a importância dessa entidade frente o momento histórico pelo qual passa a universidade hoje: as eleições do Centro Acadêmico Livre de Psicologia (CALPsi).
Acreditamos que para que possamos ser inventivos na política é importante conhecermos a história. Neste caso, resgatar o histórico das lutas do CALPsi — bem como o do movimento de estudantes dos cursos de psicologia — é riquíssimo para que se possa propor avanços para a entidade, no sentido de fortalecê-la e defendê-la frente ao cenário grave de desmobilização que encontramos na UFSC e também na conjuntura nacional.
O movimento estudantil na Psicologia: qual o seu histórico?
Os estudantes do curso de Psicologia no Brasil carregam um histórico importante nas lutas do país. No período da ditadura empresarial-militar de 1964, muitos deles participaram de diferentes organizações revolucionárias para fazer frente ao autoritarismo imposto. Esses combatentes participavam não apenas na construção de frentes de resistência em organizações políticas, mas também da reformulação de uma nova Psicologia, crítica e aliada aos interesses da classe trabalhadora, como o buscou Iara Iavelberg e outras militantes que tombaram lutando contra o capitalismo e o estado de exceção.
No caso do CALPsi, sua sede abrigava, durante aquele período, cópias de textos revolucionários, o que, se flagrado, poderia provocar graves consequências. Naquele momento, muitas entidades estudantis foram criadas pelos aparelhos de repressão para atuarem como aparelhos de vigilância ou para impedir que debates críticos pudessem ocorrer, e é essa a razão pela qual o termo “Livre” foi incorporado aos CAs que se opunham ao regime e que, mesmo após o fim da ditadura, pretenderam criar um novo movimento estudantil – autônomo em relação aos governos, às reitorias e aos interesses privados.
A repressão dos anos ditatoriais deixou marcas para toda a organização e combatividade da classe trabalhadora, incluindo os militantes de psicologia. Após esse período, muitos desses estudantes continuaram a se organizar em atividades acadêmicas, buscando fazer críticas ao processo de formação dos psicólogos, por meio de discussões sobre os currículos. Ao final da década de 1990 e início dos anos 2000, muitos cursos de Psicologia faziam importantes críticas às diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação (MEC) e à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. (1)
Contudo, com a ascensão do PT à Presidência da República em 2003, muitos estudantes ligados ao movimento estudantil de psicologia acabaram sendo incorporados na política deste partido e, posteriormente, também na do PSol. (1)
A radicalidade de muitas organizações políticas e de militantes na defesa da universidade nas décadas de 1960 e 1970 também foi sendo perdida ao longo dos anos, refletindo em uma degeneração profunda em muitos setores no movimento estudantil do Brasil. E não foi diferente na UFSC, a ponto de hoje termos um cenário que parece contraditório ao legado que o curso de psicologia apresenta, que são de setores – incluindo organizações políticas com um histórico revolucionário – se contrapondo à radicalização das lutas pela universidade.
Não muito tempo atrás, durante os anos de 2019 a 2021, o curso de psicologia na UFSC foi marcado por um profundo imobilismo durante uma gestão que se alongou por dois anos inteiros. Essa gestão iniciou-se com uma unidade entre militantes de três partidos — a Unidade Popular (UP), as Brigadas Populares (BP) e a União da Juventude Comunista (UJC) — além de outros estudantes, e esteve à frente do CALPsi tanto num período em que as lutas na UFSC explodiram devido à ameaça de fechamento do Restaurante Universitário (RU) e da própria universidade, quanto quando houve um arrefecimento desse espírito combativo, durante a pandemia e o ensino remoto. Mas nessa história, estar à frente significou emperrar movimentos que poderiam ter culminado em uma luta muito maior, com mais fôlego e vitoriosa.
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Em 2019, junto à apresentação do Future-se como uma solução do MEC para o dilema da falta de orçamento das universidades públicas — atrelado ao anúncio de mais cortes —, a reitoria da UFSC anunciou publicamente que deixaria a conta para os estudantes, ameaçando cortar o RU para todos aqueles que não tivessem isenção do passe. Mediante tal conjuntura, estudantes em todos os cursos começaram a discutir qual a estratégia necessária para impedir que o pior acontecesse à universidade e a ideia de uma greve estudantil logo criou um corpo sólido. Na leitura da maioria dos partidos que atuavam na UFSC naquele momento, como a UP, BP e UJC, aquele não era o momento conjuntural para a construção de uma greve e, portanto, atuaram no sentido de impedir que ela acontecesse.
Contrárias ao que os partidos em posse das entidades estudantis pautavam, as bases estudantis cobraram incisivamente as entidades e conseguiram deflagrar greves nos cursos, além de uma greve geral estudantil. O curso de psicologia foi um dos primeiros a conseguir tal feito, em contraposição ao esforço que as militantes dos partidos presentes no CALPsi colocavam na não construção de uma greve. A base do curso conseguiu articular-se, forçando que a entidade tomasse como política aquilo que vinha da base.
Durante esse período, a UFSC pulsava com muitas atividades diferentes, realizadas por todo o campus central: de fechamentos de centro e panfletagens a constantes espaços formativos e de discussão. Ao invés do CALPsi convocar a base do curso a estar nesses espaços, a greve na psicologia foi marcada por um isolamento em relação ao movimento da universidade. As principais atividades realizadas pelo CALPsi na greve foram: um brechó para arrecadar caixa para a greve e cafés que aconteciam diariamente com os professores do curso — sendo este praticamente o único gasto ao qual o CALPsi destinou o caixa arrecadado. Ao invés de trabalhar para a unidade dos movimentos para barrar o Future-se, o CALPsi trabalhou no sentido contrário, pelo isolamento do curso em atividades próprias, nas quais participavam apenas estudantes da psicologia, e que pouco contribuia para que seus estudantes entrassem em contato com outros espaços, outros estudantes e outras formas de lutas.
Em nossa opinião, os militantes dos partidos que estavam na entidade estudantil do curso desmobilizaram a greve desde o início, transformando as reuniões em espaços hostis, burocratizados e sem consequência política. Sequer era escondido o desejo de acabar com a greve logo, fazendo com que, em assembleia estudantil fosse deliberado o fim da greve no curso isoladamente do movimento geral dos estudantes da UFSC.
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Diga-se de passagem: aquele foi um momento de extrema importância para o movimento estudantil. Por 37 dias os estudantes estiveram em um processo efervescente de greve, que lutou por sua nacionalização à despeito das vontades de quase todos os partidos que compõem o movimento estudantil da UFSC. Naquele momento a UFSC assumiu a posição de vanguarda entre as universidades públicas federais. Se, ao invés de disputar pela linha política de seus partidos, os militantes estivessem atuando de modo a engrandecer as lutas, aquele movimento poderia ter sido ainda mais vitorioso, ter alcançado muito mais do que declarações do reitor dizendo que não fecharia o RU, podendo inclusive, nacionalizar o movimento e, quem sabe, derrubar o então ministro da educação.
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Em 2020, a partir do momento em que o isolamento social foi estabelecido, o CALPsi deixou de fazer reuniões abertas. Algumas campanhas de solidariedade foram realizadas, alguns debates surgiam em postagens, mas a forma como eram organizadas tais ações não se faziam explícitas para qualquer estudante que não estivesse na gestão do CALPsi — que era fechada.
A participação de estudantes que não estavam na nominata só foi permitida nas reuniões depois que a oposição aquela gestão conseguiu romper as barreiras impostas e realizar discussões sobre a necessidade de o CALPsi ser um espaço aberto para os estudantes do curso, independente das divergências políticas existentes. Ainda assim, foram criados espaços paralelos, exclusivos para aqueles dignos de confiança pela gestão, onde se decidia a política para o CALPsi — e onde os demais estudantes do curso não poderiam estar presentes. Eram selecionados à dedo aqueles que poderiam contribuir com a entidade, independente da disposição que muitos apresentavam para tocar atividades que eram consideradas importantíssimas nas reuniões e assembleias. Para os militantes organizados que estavam dentro do CALPsi, inclusive, não importava se nesses espaços era deliberado algo — se a gestão discordava, então não seria feito, mesmo que tivessem pessoas fora da gestão dispostas a fazer. Que tipo de relação isso estabelece entre os próprios colegas de curso? Como cumprir um papel determinante na conjuntura de forma tão fechada?
O CALPsi precisa ser livre de organizações políticas?
Com essas críticas apresentadas, perdura a questão: o Centro Acadêmico Livre de Psicologia precisa também estar livre de organizações políticas para atuar com radicalidade? Nós achamos que não, mas que são importantes algumas ressalvas.
A experiência que a UFSC tem tido com muitas dessas organizações não têm sido positivas. Conforme apontou Flora Gomes em relação ao Diretório Central dos Estudantes da UFSC (DCE), a “rachadinha” que se tornou a dita “unidade de esquerda” das gestões Ainda Há Tempo (2017) e Canto Maior (2018-2022) inviabilizou qualquer política radical. Infelizmente, muitas das organizações políticas de esquerda compartilham da mesma visão: a universidade serve apenas como uma “escola de quadros” e como meio de cooptação para outras lutas. Como se na universidade não tivessem lutas radicais! Como se o movimento estudantil não pudesse cumprir um papel determinante nas lutas da cidade! Como se o movimento estudantil não pudesse fazer frente a um governo autoritário! Como se o movimento estudantil não tivesse nada a dizer sobre as grandes questões nacionais!
Torna-se recorrente no movimento estudantil a realização de alianças entre partidos de esquerda que têm diferenças relevantes, como um acordo tácito que garanta que essas organizações conquistem espaços em entidades, mesmo que à custo do rebaixamento da política. Para esse fim, as diferenças entre as próprias organizações são apagadas na formação de chapa, e voltam a aparecer quando essas entidades são convocadas a cumprirem um papel relevante na conjuntura, porque esses são os momentos realmente decisivos.
Além disso, a estrutura interna em gestões organizadas a partir dessas composições em que o único princípio compartilhado é a leitura de que a universidade serve de espaço para crescimento das fileiras do partido fica extremamente engessada. O DCE é um exemplo disso: raramente há reuniões abertas, decisões relevantes são feitas a portas fechadas, há setores separados para cada tarefa. Hoje sequer há pessoas que sobreviveram há anos de desgaste para tocar a política da entidade… Essa política não serve às lutas da universidade, mas a um princípio de controle, que busca garantir que a linha desses partidos não sofrerá “perturbações externas”, ou seja, discordâncias da base. Como fica a relação dessas entidades com o restante do movimento estudantil? Essa política não deixaria essas entidades isoladas do movimento?
Uma experiência com uma política com esses princípios pode ser extremamente deletéria para um curso como o de Psicologia. Isso por duas razões. Em primeiro lugar, porque a conjuntura não tem dado espaço para abrir mão da urgência que tem a luta pela universidade. Em segundo, porque uma experiência dessas deixa marcas, muitas delas irreversíveis, como o afastamento de estudantes da política por sentirem que esse espaço não é para eles.
O que resta aos estudantes de psicologia?
Está em curso um cenário de desmobilização sistemática dos movimentos estudantil, tanto nacionalmente quanto na UFSC. Estudantes e militantes se defrontam com os restos do que foi o período devastador do isolamento no auge da pandemia, com a crise econômica sem precedentes que assola nossa classe.
Constatar esse momento de dificuldade passa não apenas por aceitá-lo como fato, mas por propor uma saída para isso que nos aflige. Nesse sentido, o CALPsi vem cumprindo um papel importante de protagonismo nas lutas estudantis e da cidade, um papel histórico, colocando-se na contramão dessa política sistemática de desmobilização nacional e local.
Em outros momentos de descenso das lutas, o CALPsi encontrava-se também passando por um período duro de imobilismo, mas que pôde ser rompido quando, carregando consigo a herança que tantos estudantes deixaram na história, vislumbrou nos debates sobre a formação em psicologia um eixo para reacender a crítica e a política no cotidiano do curso, pautando a diferença entre uma formação científica e uma formação profissional, quais papéis nossa formação pode cumprir em nosso contexto histórico e qual deles nós acreditamos que seja o mais acertado.
Assim, o curso pôde pautar mais uma vez a contrariedade às Empresas Juniores — cinco anos após o Centro de Filosofia e Ciências Humanas, puxado pelo movimento estudantil à época, rejeitar a instituição desse tipo de iniciativa. Também pôde construir o #EleNão, com espaços massivos de discussão sobre o perigo que enfrentaríamos com o Bolsonaro no poder, com estudantes mobilizados a ponto de paralisarem suas aulas para convencer pessoas em muitos espaços da cidade que o Bolsonaro não deveria ser uma opção.
Nesta conjuntura não há dúvidas de que o CALPsi pode cumprir um papel fundamental na defesa da universidade, mas que para isso, precisa construir na política uma relação com o curso em que se debata aberta e criticamente sobre as questões fundamentais da conjuntura, os dilemas da sociedade brasileira e o significado histórico de das iniciativas estudantis. Mais do que nunca é necessário um Centro Acadêmico radical e combativo, que seja construído por todos aqueles que se interessam pela construção coletiva da defesa da universidade. Não há espaço para o CALPsi se isole no interior da política de determinados partidos.
Esse não é um momento qualquer na história da universidade ou do país. Assim como em outros momentos, o CALPsi pode ser protagonista das lutas relevantes para o cenário da UFSC e nacional. Mais do que nunca, é necessário manter vivo o espírito de lutas e a construção concreta dos caminhos que recoloquem as questões importantes acerca da universidade e das grandes questões nacionais. O CALPsi cumpriu um papel determinante na construção do movimento #EleNão contra as eleições de Bolsonaro em Florianópolis; na recuperação de críticas à formação exclusivamente profissional; no questionamento de iniciativas empreendedoras no interior das universidades públicas; no aprofundamento do debate sobre a amplitude dos espaços pedagógicos da universidade, como as atividades culturais, entre outras.
Para que o CALPsi continue cumprindo esse papel lado a lado com os estudantes do curso e da universidade em geral, é necessário que a próxima gestão do Centro Acadêmico tenha a disposição necessária para construir aquilo que é urgente em uma conjuntura como esta.
(1) Hur, D. U. & Aragusuku, H. A. (2018). Políticas do movimento estudantil de psicologia no Brasil. Memorandum, 35, 184-204.
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