[Opinião] O discurso dos privilégios a serviço de confundir os trabalhadores

Cartaz de divulgação do debate Por que a Reforma Administrativa é um ataque a todos os trabalhadores?”, com a Prof. Dra. Selma Venco. Por UàE.

Clara Fernandez* – 15/08/2021 – publicado originalmente em Universidade à Esquerda – Atualizado às 19h18m.

No dia 17/08, às 18h, a Escola de Formação Política da Classe Trabalhadora (EFoP) realizará o debate: “Por que a Reforma Administrativa é um ataque a todos os trabalhadores?”, com a Prof. Dra. Selma Venco. Até lá, o Universidade à Esquerda irá publicar diversos textos para contribuir com as discussões. O evento visa trazer questões que possam ser úteis às mobilizações que têm sido organizadas para combater a Proposta de Emenda Constitucional 32/2020, que pretende atacar o regime de trabalho dos servidores públicos. 

O que se entende como privilégios do serviço público?

Férias mais amplas, licenças, remuneração e principalmente a estabilidade, são todos fortemente atacados como privilégios dos servidores públicos pela grande mídia, os capitais e governos mais abertamente de direita, que ressaltam que estes direitos acabam por diferenciar os trabalhadores do serviço público, do serviço privado. Alguns debates precedentes neste jornal já explanaram como a configuração do modelo de trabalho do funcionalismo, principalmente a estabilidade, o direito mais ferozmente atacado, é algo essencial para que trabalhadores possam realizar com zelo a função pública, colocando-a a frente de interesses pessoais ou de terceiros.

Neste texto, eu gostaria de debater de forma mais específica as diversas modalidades de gratificações e adicionais que estes trabalhadores recebem, com uma maior abrangência do que os trabalhadores do âmbito privado, como por exemplo, insalubridade, serviço noturno, auxílio creche, ajuda de custo para uso de veículo próprio, ocasiões especiais, adicionais por tempo de serviço, entre outros.

Estes adicionais, pelos trabalhadores, são entendidos como direitos e geralmente são fruto de negociações de processos de luta contra desmontes ou melhores condições de trabalho; pelos patrões e governantes, são tratados como privilégios. Mas quando olhamos as implicações reais que esse tipo de política têm, vemos que na verdade sua função é um pouco mais complexa, e elas acabam a serviço das políticas de rebaixamento de remuneração de trabalhadores nos âmbitos público e privado.

No setor privado, como se toma de referência o salário base de uma categoria, sem seus complementos, a consequência é a contribuição de forma indireta com o rebaixamento do salário dos demais trabalhadores.

Já no serviço público, os complementos salariais são tratados como privilégios por governantes na primeira oportunidade em que estes decidem investir em uma ofensiva para reduzir salários de trabalhadores, fazendo uso de mecanismos de comparação para jogar uns contra os outros. Estes trabalhadores ficam em uma situação muito fragilizada, pois na primeira ocasião em que um gestor político quiser atacá-los, ele o faz com muito mais facilidade e com menos resistências, pois dificulta as próprias condições dos trabalhadores de compreensão e enfrentamento de uma redução salarial. Sem contar que recursos de proteção legal se tornam fracos diante destas modalidades de fragmentação que descaracterizam aquilo que faz parte do conjunto de uma remuneração.

Assim, esta política tem pouco a ver com algo que coloca os servidores públicos em um lugar melhor que os trabalhadores da iniciativa privada. Trata-se apenas de uma forma cínica de fragmentação de salário de categorias inteiras, que serve muito facilmente a um reajuste em momentos de ofensivas contra trabalhadores. 

Aqueles profissionais que atuam em serviços básicos, como educação, saúde, infraestrutura, principalmente na esfera municipal e estadual, muitas vezes ganham salários de no máximo 5 mil reais. O DIEESE indica que o valor do salário mínimo nos dias atuais deveria ser de R$5421,84, de acordo com o preço da cesta básica. Ou seja, os salários de muitos servidores, com adicionais, pode chegar perto daquilo que deveria ser o mínimo para todos os trabalhadores, e em muitos casos não chega. Contudo, nas categorias de serviços mais essenciais, quando se retiram os complementos, os salários ficam cada vez mais rebaixados.

Para exemplificar, uso aqui o salário de um técnico de enfermagem, um profissional que tem se mostrado essencial durante a pandemia. Segundo o portal da transparência da prefeitura de Florianópolis, a remuneração base deste técnico de enfermagem é de aproximadamente R$2000,00, mas com os adicionais, o salário final deste servidor aumenta para a faixa de R$3000,00. No site de vagas de emprego Indeed, é apontado que a média salarial de técnicos de enfermagem em SC é R$1702,00, o que ajuda a entender como o salário base dos servidores públicos, separado dos adicionais, é utilizado para rebaixar o salário dos demais trabalhadores. Confira abaixo a imagem do salário do técnico de enfermagem:

Fonte: Portal da transparência PMF, 2021

Um outro exemplo de um profissional essencial na saúde, é um motorista do SAMU, que ganha a seguinte remuneração:

Fonte: Portal da transparência PMF, 2021

Segundo o próprio site da prefeitura, as Verbas Eventuais tratam-se de Itens remuneratórios pagos eventualmente em função do local de trabalho e/ou exercício da função e do horário de trabalho. Já as Verbas Indenizatórias são as parcelas como o auxílio alimentação, vale-transporte, creche, indenização pelo uso de veículo próprio, ajuda de custo, etc. Em alguns casos esses adicionais sequer significam de fato complemento da remuneração, como no adicional indenizatório de vale-transporte e por uso de veículo próprio para o trabalho, que é um adicional que representa uma reposição do que o trabalhador gasta de seu próprio bolso para realizar sua função.

No caso do técnico de enfermagem, mais de ⅓ do salário que este servidor recebe hoje, poderia ser facilmente cortado, caso a prefeitura resolva aplicar reduções salariais cortando diferentes adicionais ao longo de alguns meses ou anos. No caso do motorista do SAMU, mais de metade do seu salário está vulnerável aos desmandos de cada governo de plantão.

Com a PEC 32/2020, a Reforma Administrativa, uma parte do salário destes servidores já está ameaçada hoje. Este projeto pretende cortar diversos adicionais, impactando drasticamente desde já no salário de servidores:

XXIII – é vedada a concessão a qualquer servidor ou empregado da administração pública direta ou de autarquia, fundação, empresa pública ou sociedade de economia mista de:

[…]

  1. b) adicionais referentes a tempo de serviço, independentemente da denominação adotada;

[…]

  1. g) adicional ou indenização por substituição, independentemente da denominação adotada, ressalvada a efetiva substituição de cargo em comissão, função de confiança e cargo de liderança e assessoramento;

[…]

  1. i) parcelas indenizatórias sem previsão de requisitos e valores em lei, exceto para os empregados de empresas estatais, ou sem a caracterização de despesa diretamente decorrente do desempenho de atividades; 

Tudo isto nos indica que longe de serem privilégios, os adicionais precisariam ser considerados pelo conjunto dos trabalhadores como uma dificuldade que precisa ser superada na luta conjunta, ombro a ombro. Mais do que reivindicar a manutenção destes adicionais, em oposição à pauta do governo e dos capitais, de extinção destes, seria importante poder lutar para que os adicionais fossem incorporados no salário real do conjunto dos trabalhadores.

Em primeiro lugar, para que os próprios servidores possam mobilizar-se sem ameaças constantes por parte dos governos e gestores de possíveis cortes nos adicionais de salário. Em segundo, para fazer freio ao rebaixamento dos salários na iniciativa privada.

Quem são os verdadeiros privilegiados?

Por outro lado, quando olhamos para juízes, magistrados, cargos de alto escalão nos governos federal, estadual e municipal, seus salários e suas condições de trabalho pouco ou sofrem nenhum impacto com esta reforma. 

Leia mais em: Servidores Públicos: quem tem privilégios?

São justamente estes setores que estão frequentemente envolvidos em manchetes escandalosas sobre suas condições de vida, altos salários e até mesmo envolvimento em casos de desrespeito aos cofres públicos. 

A grande imprensa, à serviço da ordem dominante, usa destes casos para colar nos servidores públicos da base da pirâmide a imagem de privilegiados. Equiparam as garantias mínimas que deveriam ser de todos os trabalhadores, às verdadeiras situações inadmissíveis, fazendo com que trabalhadores se voltem uns contra os outros.

Quando olhamos para os dados da realidade, o que se evidencia, é que os verdadeiros privilegiados, na verdade, são aqueles que cumprem funções essenciais para a classe dominante e essa reforma nem chega perto das condições de trabalho destes. Por outro lado, os trabalhadores que cumprem funções essenciais para o interesse público, que servem para garantir as condições de manutenção e reprodução da vida de todos, como os trabalhadores da saúde e da educação, irão ser pressionados contra a parede da forma mais agressiva possível. 

Ou seja, o que está em jogo aqui é uma questão de classe! Identificar quem são os verdadeiros privilegiados e beneficiados desta reforma, implica em saber quem são os verdadeiros inimigos da classe trabalhadora.

Perspectivas de luta

No dia 18 de Agosto está marcada uma greve do conjunto do funcionalismo municipal, estadual e federal, que poderá ser um passo importante no enfrentamento à PEC 32/2020, por conseguir unificar os servidores das diferentes esferas. Mas é preciso ir além! Essa luta também é do interesse dos demais trabalhadores e a força destes nas mesmas trincheiras é o que pode enriquecê-la.

A reflexão sobre o papel da função pública pode nos ajudar a desmistificar como as condições de trabalho dos servidores públicos são de interesse de todos os trabalhadores e pode ser de grande contribuição para o fortalecimento da luta contra a Reforma Administrativa. 

Convite 

Estes e outros pontos da Reforma Administrativa serão abordados no debate do dia 17/08, que ocorrerá às 18h, no canal da EFoP no Youtube. A Prof. Dra. Selma Venco tem realizado diversas pesquisas sobre a Nova Gestão Pública e seus impactos no serviço público, principalmente na área da educação. O espaço visa contribuir para as lutas que serão travadas contra a PEC 32/2020, sobretudo no dia 18/08, no dia da Greve Nacional contra a Reforma Administrativa. Faça sua inscrição no site da EFoP.

* Os texto de opinião são de responsabilidade dos autores e podem não refletir a opinião do jornal.

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