Um novo início

Marcelo F.* – Redação – 04/03/2020

Começou o primeiro semestre letivo de 2020 na Universidade Federal de Santa Catarina.

Como em todos os anos, a grande massa cerebral de estudantes é reabsorvida dentro das salas e laboratórios — logo após de ter sido dispensada, ao fim do último ciclo — e uma porção dela, pela primeira vez, dá início a sua experiência na universidade, uma que terá de trilhar por pelo menos quatro cíclicos anos, antes de se formar e ser expulsa definitivamente, graduada.

Em um momento, quando eu mesmo fui calouro desta instituição, busquei insistentemente ingressar em um laboratório de pesquisa aplicada, colhendo aos montes os “volte quando já estiver mais avançado no curso” até que finalmente chegou o “você terá que se esforçar em dobro”, o que me conduziria a uma série de reflexões sobre o sentido de uma universidade.

Foi quando me foram confiados um caderno e uma bancada — um puxadinho de bancada —, nos quais eu realizaria as atividades de pesquisa, seguindo uma orientação rigorosa: deveria descrever detalhadamente o procedimento e os resultados de uma lista de preparações químicas (tratava-se de um laboratório de síntese orgânica). As moléculas sintetizadas seriam, futuramente, comparadas num banco de dados com milhares de outras moléculas, entre as quais selecionadas umas tantas para, depois de testadas em escala industrial, serem destinadas à produção de medicamentos eficientes contra o Câncer.

Eis que, se, de um lado, o horizonte de produção de medicamentos para combater a doença era longo, levando da bancada ao balcão do posto de saúde muitos anos, se não décadas, do outro, a atividade de pesquisa (preparação e registro) era equivalente à de uma pequena peça em uma grande máquina com pés em cinco continentes. 

Colocando dessa forma, pode parecer que isso seria desafiador demais, demorado demais, ou até mesmo entediante, já que, de largada, havia uma resistência em se tornar um resultado imediato, um produto prático, e mesmo a atividade prática se tornaria cada vez mais abstrata com a repetição. A contribuição de um elo dentro de uma cadeia grande de elos parece, à primeira vista, difícil de ser precisada ou negligenciável.

Mas é com rapidez que aquela curiosidade — tão viva nas crianças e que está presente em todos aqueles que ingressam em uma Universidade — é temperada em um “espírito científico”, ou melhor, num espírito propriamente universitário, que é dificilmente abalado. Penso que, tal qual o ofício dos monges copistas nos mosteiros medievais, cujos demorados manuscritos nos legaram o conhecimento não só de sua época como também o acumulado em toda a Antiguidade, é de qualidade espiritual a dedicação à Universidade, à dedicação ao conhecimento, à sua produção, sistematização e socialização nos mais altos graus.

Entretanto, contra toda essa anedota, vemos muitas gerações de estudantes atravessarem a experiência na universidade sem um mergulho sequer no espírito universitário. Parte vive uma experiência narcótica, transformando os momentos de festa e descontração na vivência cotidiana, todo o resto em função disso (notem a onipresença da venda de ingressos). Parte deles restringe seu horizonte à sua própria formação profissional, rezando o mantra de que a universidade é um instrumento da ascensão social, que o conhecimento faz dinheiro. Ainda uma outra parte vê a universidade estritamente como uma plataforma de fazer política ou de se tornar político de carreira.

Por fim, há uma parte daqueles seres repletos de curiosidade, que nutrem sonhos por sua experiência na universidade, que ingressam nela como estudantes — aí vem o ponto deste texto — há uma parte que deixa de mergulhar no espírito universitário porque este é insistentemente negado, contestado e rejeitado, por toda a parte.

Irão rejeitá-lo a maioria de seus professores, a Reitoria, as diretrizes educativas do Governo Federal (e até do Banco Mundial) e muitos de seus colegas. Dirão que a universidade deveria ter mais prática e menos teoria, que ela deveria ter mais proximidade com a empresas e a vivência empresarial e — por que não? — que os trabalhos de mestrado e doutorado deveriam se tornar eles mesmos produtos mercadejáveis. Está dito por toda a parte e será dito outras vezes que o mundo mudou muito nos últimos anos e que o grosso da educação está obsoleta, que, portanto, devem-se buscar outras formas, como a educação voltada às competências socioemocionais (cultivando uma disposição pacífica para o ambiente de trabalho) e preferencialmente na modalidade à distância.

Não há mais nenhum espaço, na visão desses todos, para um conceito de Universidade de aspiração mais universal. Não há espaço para a pesquisa pura, para a dedicação integral ao conhecimento. Para eles, é pretensioso imaginar que possa se formar em nossas universidades um novo Isaac Newton, um Charles Darwin, um Hegel, um Marx. Não, trata-se de formar trabalhadores cada vez mais cedo, e cada vez mais unilateralmente capazes para uma vida de trabalho.

Por essa razão, a cada início de ciclo letivo corresponde uma luta embrionária pela mudança radical. Embrionária porque suas causas estão presentes em todos aqueles que ingressam na universidade, ainda que não de forma desenvolvida, mas como uma potência. É radical porque inevitavelmente se choca com as condições sociais em que nos encontramos, raízes que nos prendem, além de tudo o mais, a uma formação universitária que é hoje, em sua maior parte, uma angústia. Finalmente, será luta por mudança, porque não estamos falando simplesmente de idéias mas de pessoas, que se engajam em discussões em sala de aula, na militância política, nos conflitos políticos, cotidianos ou inéditos, estes últimos cada vez mais presentes.

Assim, o início de ciclo não é somente um “retornar aonde parou”. É verdadeiramente um novo início. As possibilidades estão em aberto.

*O texto é de responsabilidade do autor, e não reflete necessariamente as posições do Jornal.  

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