“Los dolores que quedan son las libertades que faltan”
La juventud argentina de Córdoba a los hombres libres de Sudamérica, também conhecido como Manifiesto de Córdoba
Caio Sanchez* – Publicado originalmente no Universidade à Esquerda – 07/03/2020
As universidades públicas brasileiras atravessam um momento sensível no que tange a seu destino. Ao menos desde o início de 2019 evidenciou-se com mais vigor a relevância de seus princípios, quando o então Ministro da Educação, Abraham Weintraub, acusava ferozmente essa instituição de balbúrdia enquanto forçava a assimilação do “Future-se” chantageando por meio da base orçamentária das Instituições Federais de Ensino Superior (IFEs).
Ficou explícito que espaços minimamente autônomos de produção deveriam ser submetidos à lógica do atual Governo, cujas bases não têm escrúpulos para defender abertamente o que há de mais sórdido na produção de capital: a submissão sem exceção de toda a sociedade à produção de mercadorias. Ainda que a destruição das universidades públicas não tenha sido projeto iniciado com a eleição do atual chefe do executivo, nos últimos meses demonstram um tensionamento cada vez maior dos critérios de produção adotados rigorosamente em outras esferas para o interior dessas instituições, cuja função específica, a crítica a tudo e à todos, ainda resiste em alguma medida à submissão a esses parâmetros.
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Nem mesmo durante o momento dramático que atravessamos enquanto humanidade os capitalistas dão qualquer trégua. Na verdade, é o contrário. Enquanto o país assistia às primeiras centenas de mortes no país pela pandemia da Covid-19, ao início do colapso hospitalar em diversos estados e ao crescimento descomunal do desemprego, João Paulo Lemann regurgitava insensivelmente um otimismo macabro. “Todas as crises por que eu passei foram duras e eu sofri, não sabia como chegaria ao fim, mas alguma oportunidade apareceu”, afirmou em um evento do Fórum da Liberdade, organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais. Para sujeitos como ele, esse momento seria adequado para avançar oportunamente seus projetos educacionais.
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É na esteira da compreensão das intenções atreladas tanto ao Estado quanto aos aparelhos privados de hegemonia que devemos inserir o debate sobre as Universidades Públicas no momento de pandemia.
Do caráter urgente da volta às atividades de ensino
O teor da ampla maioria dos debates sobre as Universidades Públicas neste momento carrega a premissa de que ela possui uma urgência intransponível que ditaria o retorno de suas funções. A pergunta que se apresenta de primeira é: como fazer com que a universidade volte para suas atividades o mais rápido possível?
A formulação dessa questão parece apresentar o contexto de pandemia como um infortúnio que precisa ser driblado de alguma forma. Aparenta uma certa recusa em admitir a dramaticidade diária envolvendo toda a catástrofe social, que abarca lutos e perda de laços em um cenário que constrange trabalhadores a perdas laborais cada vez mais intensas. É como se a lógica que sustentasse essa premissa fosse a de que parar determinadas atividades implicasse em perdas, logo, seria necessário continuar, quase como para anestesiar os efeitos, adaptando-se às condições do “novo normal”. De fato, é importante que socialmente assimilemos as transformações que a pandemia impôs às rotinas, mas isso não deveria significar que tenhamos que assumir com rapidez o retorno de todas as atividades a todo custo. Não há nenhuma normalidade no momento em que vivemos e talvez o primeiro passo seja admitir isso.
No caso das universidade públicas, a questão deveria ser, portanto, não de “como” mas “por que” voltar. Como ficou evidente na fala de Lemann, a burguesia e seus quadros se aproveitam de momentos duros a todos para escrachar cretinamente seu projeto para as universidades pública. Sobretudo após o período da ditadura empresarial-militar, contornos que exigem certa produtividade do exercício universitário passaram a vigorar com mais força. A maneira como essas instituições exercem atividades pedagógicas e administrativas tem sido tensionada para reconfigurar seu sentido político.
Como afirmou Felipe Demier, a burocracia universitária adotou a racionalidade irracional de nossos tempos, buscando uma mórbida assimilação da normalidade. As pressões chegaram a tal ponto que parece natural pautar que a universidade pública deva retornar às atividades para “garantir os diplomas dos estudantes” e para que os “servidores públicos não fiquem em casa recebendo salário”.
Sobre o primeiro ponto, a lógica que sustenta essa premissa é a de que Universidade seria apenas uma instituição na qual o Estado certificaria sua aptidão a exercer uma determinada função laboral. É necessário resgatar o que fundamenta o exercício das universidades públicas, para assim, buscar contrapor esse princípio que aparentemente tem sido imposto como intransponível às universidades. Em linhas gerais, a função das Universidades desde seu surgimento no momento revolucionário da burguesia é de produção de conhecimento do mais alto nível. Para isso, é necessário que ela possa ter autonomia de crítica em relação a interesses privados ou ao Estado, seja qual for a natureza do governo. Se por um lado muitos entraves foram impostos à autonomia universitária, por outro, ainda é possível reconhecer na instituição universitária um espaço que ultrapassa a produção de diplomas.
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Facilmente reconhecemos que a experiência em uma Universidade Pública nos coloca pela primeira vez em um patamar muito distinto em termos da relação com o conhecimento, com o espaço físico desta instituição e com a participação política. A título de menção podemos citar a possibilidade de participar das decisões de nossa formação – como quando há nos debates de reformas curriculares no colegiados de curso, ainda que com participação estudantil reduzida – e de a contato com produção de conhecimento crítico, dentro e sobretudo fora das salas de aula, em debates e eventos promovidos em seu interior pelas mais diversas categorias e origens políticas.
Por essas e muitas outras razões a Universidade Pública difere-se de outras instituições. Suas atividades não podem ser calculadas sob critérios de medição de produtividade como quem calcula o tempo produzir uma determinada mercadoria. A função específica exercida no seu interior não podem ser adaptada aos contornos exigidos no mercado de trabalho, cuja tendência é a intensificação da jornada de trabalho. Não à toa o capital visa diminuir na cada vez mais o tempo entre produção e aplicação de teorias desenvolvidas na Universidade, tensionando currículos cada vez mais pragmáticos e voltados para formação profissional. Entretanto, a produção de uma teoria não pode ser submetida a essa lógica. Isso seria o fim da própria produção complexa de conhecimento, seja qual for o campo. Por isso, por trás dessa urgência, há um projeto muito deletério para as universidades públicas e que visam justamente transformar a Universidade em um centro de certificação de massa.
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Adotar “Ensino Remoto” para barrar o EaD
Como saída rápida ao retorno das atividades, tornou mais latente projetos educacionais atrelados à Educação a Distância (EaD). Parte daqueles que admitem a incongruência entre a função das universidades públicas com essa modalidade passaram a adotar um eufemismo: “Ensino Remoto”, termo que a princípio não existia na literatura.
A sociedade brasileira tem nas universidades públicas uma referência ao que há de mais elevado no ensino superior. A adoção da modalidade a distância nessas instituições tensiona pelo rebaixamento à precariedade geral do ensino superior. Realizei uma breve pesquisa no Google com a seguinte frase: “Diferença entre EaD e Ensino Remoto”. O resultado foi que nos três primeiros itens apareceu artigos de universidades particulares como “unicesumar”, “cesusc” “unisantana” nos quais aponta-se para a suposta indiferença entre ambas as modalidades. Ou seja, essas instituições atreladas a interesses evidentemente particulares estão pautando o EaD nesses termos. A Universidade Pública, ao invés de assimilar ideologicamente essa suposta indiferença, tem a obrigação de recolocar esse debate de forma reflexiva
Os argumentos que diferenciariam ambos seria a suposta transitoriedade do “Ensino Remoto”, desatrelada do significado amplo do EaD. Entretanto, as tecnologias adotadas no Ensino Remoto, bem como adaptações curriculares e formação de professores necessárias a essa transformação, são as mesmas exigidas para implementação do EaD. Talvez isso signifique que não há uma diferença significativa entre ambas e que compõem a esteira de um mesmo projeto.
Além disso, o Ensino Remoto carrega um certo eufemismo, já que não seria imediatamente identificado aos processos de Educação a Distância, comumente conhecidos por serem mais precários — tanto para os estudantes quanto para os professores. Entretanto, o EaD é projeto de longa data do capital. Pesquisas no campo da educação, como as realizadas pelo Grupo de Investigação sobre Política Educacional (GIPE-Marx) na Universidade Federal de Santa Catarina, apontam tanto para os impactos da adoção do EaD na formação de professores, cada vez mais destituídos de sua função enquanto intelectuais, quanto para os estudantes, que ficam privados de ter uma relação complexa com o conhecimento.
Na prática, a adoção do Ensino Remoto seria uma forma assimilar que há algo de normal nessa modalidade de ensino quando, em realidade, destitui a Universidade de seu exercício fundamental.
As Universidades resistem
Algumas universidades inclusive já adotaram essa modalidade, ao passo que outras negociam alguns condicionantes a serem estabelecidos. Em instituições como a Universidade Estadual de São Paulo (USP) e Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), estudantes que já passaram pela experiência do Ensino Remoto realizam campanhas e boicotes.
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Os relatos desses estudantes apresentam diversos elementos que demonstram a catástrofe que essa modalidade representa. Além de problemas de acesso não resolvidos por meio de editais formais, os quais são geridos pela reitoria com o fornecimento de alguns pacotes de internet, tanto os professores quanto os estudantes enfrentam problemas vinculados a questões pedagógicas e estabilidade no interior da instituição. Na prática, a adoção do ensino remoto, cujas campanhas ideológicas reforçam a “inclusividade digital”, resultam em um abandono dos estudantes que, pelas mais diversas razões, não conseguem adaptar-se ao acompanhamento de vídeos em plataformas digitais, que passam tristemente a serem chamados de “aulas”.
Para onde vamos?
Penso que o primeiro passo é limpar o campo para assumirmos uma oposição ao EaD que não possa ceder em nenhum aspecto conciliatório. Se o Estado e a burguesia objetivam tratar os possíveis entraves desse modelo a questões particulares, as quais poderiam ser gestionadas com determinadas políticas de compensação, nós, a força da Universidade, precisamos sustentar uma posição de total intransigência a esse modelo. Todos os problemas mencionados ao EaD são inerentes a ele e qualquer política de redução de dano fere o sentido das universidades públicas tal como as conhecemos. Ano passado as universidades, sobretudo a Universidade Federal de Santa Catarina, adotaram uma posição inflexível para com o “Future-se”: se qualquer aspecto daquele projeto fosse aprovado, isso significaria o fim das Universidades. Penso que devemos retomar nesses patamares nossa atual luta política.
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Além disso, penso ser fundamental retomar debates importantes que têm sido apresentados para justificar no campo político a adoção do EaD.
Se o que retrai a radicalidade de nossas lutas são as amarras institucionais, está mais do que na hora de colocarmos o absurdo de tais amarras. Nossa preocupação pela manutenção do pagamento das bolsas estudantis e salários dos professores, podem, além de ser uma exigência pautada por uma oposição intransigente, recolocar esses importantes debates no interior das universidades.
A permanência estudantil, por exemplo, não pode estar dissociada do caráter específico que a Universidade exerce enquanto instituição. Podemos recuperar a importância dessa pauta não apenas para garantir bolsas, mas sim, uma política da nossa parte que oriente as Universidades a terem orçamento e posição política firme para garantir que os estudantes possam passar pelos anos na universidade sem preocupações acerca de moradia, comida ou qualquer outra necessidade que os tire de não poder dedicar-se exclusivamente às atividades da Universidade. Ela deve dispor a seus estudantes tais recursos.
No tocante a categoria dos professores, poderíamos retomar a importância dos docentes universitários enquanto figuras que devem ser referências intelectuais e políticas aos estudantes. Seu exercício não pode ser constrangido por técnicas de adestramento laboral que constrangem o desenvolvimento intelectual. São mecanismos como Planejamento e Acompanhamento de Atividades Docentes (PAAD) que muitas vezes empurram professores à defesa do retorno às atividades na modalidade EaD, já que assim retornaram à contabilização das horas que justificaram formalmente a continuidade de seu labor. O que é um absurdo. Primeiro porque o preenchimento das 40 horas semanais não demonstra qualquer qualidade das atividades desenvolvidas nesse período. Segundo, porque um exercício como este é extremamente particular e não pode ser contabilizado com tais formalidades típicas das atividades mercadológicas.
Penso ainda que em um momento como este vemos o quão caro nos custa abrir mão do significado profundo da autonomia universitária. Se de fato esse princípio estivesse sendo respeitado, nossa preocupação não seria com as pressões do MEC ou das baboseiras produzidas por mídias burguesas. Estaríamos debatendo de fato como a Universidade Pública poderia pensar sobre a atual crise brasileira, refletindo sobre a situação dos trabalhadores, da pandemia, do espaço urbano e dentre tantas outras questões fundamentais que atravessam profundamente nossas rotinas.
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É apenas assumindo que o EaD não condiz com a função das Universidades Públicas que podemos recolocar o que é realmente importante para nós. Se o Estado e a burguesia querem convencer de que não há outra saída, temos o dever de mostrá-los que estão errados.
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